Omar

Tem pessoas que a gente costuma encontrar no dia a dia, dá um bom dia, comenta sobre o tempo, faz uma piadinha qualquer e segue em frente. O Omar é uma dessas pessoas. Costumo cruzar com ele nas ruas, a passear com um daqueles cachorros de olhos azuis, aquela raça que tem cara de lobo. Às vezes ele está com a mulher, às vezes só com o cachorro. Omar é um tipo que, mesmo que tentasse, não ia conseguir passar desapercebido. Alto, cabelos branquinhos, bem arrumado e com o andar apressado que me lembra muito um avestruz. Sempre tive a impressão de que ele fosse um frio engenheiro gringo, um desses cérebros avoados que ficam resolvendo equações integrais enquanto caminha, eu tinha certeza de que ele havia sido importado por alguma empresa aeronáutica da região…

A mente da gente tem essa mania, de ir compondo um quadro à partir dos retalhos das nossas projeções, minuciosamente colados com a cola dos nossos julgamentos.  Era o que eu tinha feito com o Omar, até que hoje à noite, ao dar uma volta pelo condomínio, fazendo hora antes de sair para mais uma festa junina temporã, topei com o Omar na casa de uma amiga comum. Logo de cara descobri que ele não era nem um pouco gringo, tinha nascido aqui mesmo, no Vale do Paraíba, e os erres arrastados não tinham nada a ver com sotaque estrangeiro, mas eram expressão do mais puro caipirês joseense! Descobri, também, que ele era o autor do enorme quadro colorido, que enfeitava uma das paredes da sala da minha amiga.

Fazia muito frio e, a dona da casa, boa anfitriã que é, serviu-nos um carménère chileno, acompanhado de pão, queijo, salame, e acendeu um lindo fogo na lareira, alimentado com madeira descartada que ela vai juntando pelo condomínio afora. Com a língua solta, foi fácil quebrar as barreiras. A conversa ficou tão boa que eu acabei esquecendo da festa junina… Quis saber do Omar como foi que ele começou a pintar e a pergunta acabou escancarando as comportas do passado do meu ex-engenheiro. Com sua voz grave, ele monopolizou a audiência e desfiou o que eu imagino que tenha sido a fase mais escura da sua vida.

Disse ele que tudo começou quando, aos 13 anos, em vista de suas dificuldades escolares, já prestes a repetir de ano pela segunda vez, ele resolveu o problema de maneira pirotécnicamente espetacular. Simplesmente, diante da família reunida na sala, ele surge de cuecas, faz uma pilha com o uniforme e todo seu material escolar, esvazia um litro de álcool em cima da pilha e toca fogo na mesma. O atônito pai, um esforçado motorista de caminhão que a duras penas vinha mantendo os seis filhos na escola, não teve dúvidas: daquele dia em diante, Omar teria que pagar pelo próprio sustento, um par de meias que fosse, ele teria que pagar do próprio bolso. Expulsou-o do quarto onde morava, colocou-o numa edícula nos fundos do terreno e se ele quisesse comer em casa, seria das sobras, depois que todos tivessem comido. Omar também não teve dúvidas, sem escola e sem apoio familiar, caiu na marginalidade.

Nas ruas, Omar passou anos se drogando e para arrumar dinheiro para o vício, descobriu sua vocação ao se meter a pintar os ídolos roqueiros da época; Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Raul Seixas & Cia, nas paredes dos quartos de filhinhos-de-papais, seus companheiros de viagens. O abuso, claro, fez devassa na saúde de Omar, que muitas vezes acabava dormindo na rua. Um belo dia, ele acordou no portão de uma boa alma, que condoída do estado do rapaz, maltrapilho e com apenas dois dentes na boca, acolheu-o, vestiu-o, tratou dos dentes e conseguiu que ele fizesse um curso técnico, o primeiro degrau para a conquista do emprego de desenhista, no qual ele trabalha há já 28 anos.

Perguntei para o Omar porque ele pinta, ele diz não sabe; nunca se perguntou o motivo, mas sabe que gosta, que é uma necessidade vital, assim como o ar que respira. E como o ar que ele respira nunca é o mesmo, assim é com sua arte, está sempre se renovando. A tal ponto que não suporta ver seus trabalhos antigos; o que sobra, do pouco que consegue vender, ele destrói num ataque de raiva, dá pra quem queira ou recicla em novos trabalhos. Diz ele que vai me dar uma obra, da fase dark, anterior a esta atual, minimalista, (será que um quadro todo preto consegue visto de entrada lá em casa?). Falando em casa, não fosse pelo meu receio de chegar muito tarde e enfrentar cara feia da patroa (eu já tinha dado o cano nela, esquecendo da festa junina!), teria continuado minha entrevista com o frio engenheiro, que agora se transformara num ser humano de verdade.

Com um baita dó de cortar a conversa e largar o aconchego da lareira, me despedi do ex-engenheiro com um abraço gostoso, enquanto eu me dava conta, mais uma vez, que a mente é uma grande mentirosa, tão artista quanto o Omar, quando se trata pintar os quadros mais absurdos.

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2 Respostas to “Omar”

  1. chicoabelha Says:

    Edna, não tem jeito, como eu disse no texto, a mente é uma artista! Dê um golpe baixo nela, inocule-a com um câncer bem agressivo e saia celebrando o prazer viver! Escreva isso pra não esquecer! rsrsrsrsrsrs!

  2. edna Says:

    Gosto do seu jeito de escrever…Leio de um fôlego só! A história vai se misturando com suas reflexões…Me identifico com isso…Será coisa do nosso sígno? Ou outra afinidade qualquer…
    Queria ler dessa forma e com tanto prazer as teses e artigos ou livros que tenho que ler para a faculdade…rsrsrsrs

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