Viagem de Metro

A campainha soou e ele apressou o passo, mas não deu tempo, acabou imprensado na porta do vagão e atrasando a saída do trem. A voz metálica do locutor repetiu a mensagem de sempre: “Não obstrua as portas do metro, para não atrasar a sua viagem e as dos demais usuários“.

O homem, um gordo com cabelo e bigodinho à la Hitler, óculos fundo de garrafa, vestindo um impecável uniforme de zelador, praguejou contra a porta. Liberado da mesma, esbaforido e nervoso, o homem postou-se bem à minha frente. Sacou uma revista de sua bolsa tiracolo, apoiou-a em sua enorme barriga, ajeitou os óculos e pos-se a ler, com o trem já em movimento.

A moça ao meu lado, que me pareceu ser uma secretária, bolsa Louis Vuitton em punho, vestida com um tailleur muito chique para quem viaja de metro, esticou o pescoço para ver o que o zelador estava lendo. Da posição em que eu me encontrava, pude ler claramente a palavra “Mundo”, que certamente era parte do título da revista. Um pouco mais abaixo do título estava a imagem que deve ter chamado a atenção da secretária: uma mulher gorda, vestida num traje sadomasoquista e montada num porco.

De repente cai a força, diminuem as luzes e o trem para. O bebê no colo da família de bolivianos, sentada lá no fundo do vagão, abre um berreiro de furar os tímpanos. No ar, um murmúrio geral de reclamações contra a precariedade dos serviços do metro. O zelador guarda a revista, não dá pra ler na semi escuridão.

A japonesa loira, com fones enfiados em seus ouvidos, nem toma nota do que acontece à sua volta, continua absorta, distante, curtindo seu pagode num volume absurdamente alto, perfeitamente audível agora que os motores do trem estão desligados.

O casal gay, sentado em frente aos bolivianos, aproveita o escurinho para ousar um pouco mais nas carícias e passa a trocar beijinhos. A mãe do bebê chorão arregala os olhos e cutuca o marido e os outros filhos, dá a entender que não é para eles ficarem olhando a abominável cena que se desenrola à sua frente.

Cortante como uma espada, ouve-se uma voz que eu só posso imaginar saída da boca de um pastor: “Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não os enganeis: nem os imorais, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os afeminados, nem os homossexuais, nem os ladrões, nem os avaros, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes herdarão o reino de Deus.”

Não deu tempo do mal estar se estabelecer, a força voltou e a luz caiu sobre todos, antes do pastor terminar seu ultimato, dissolvendo as diferenças e renovando as esperanças de não chegarmos atrasados a nossos destinos.

O zelador sacou novamente a revista, acomodou-a mais uma vez em sua barriga e agora pudemos ver mais claramente, a secretária e eu, o que estava escrito na capa. A matéria de capa chamava-se “Sexo Animal” e o nome da revista era “Mundo Estranho“. Ela virou-se para mim e disse baixinho:

__Quer mundo mais estranho que esse à nossa volta? Pra que gastar dinheiro em revista se a estranheza está acontecendo de graça, na cara da gente, o tempo todo? Não é à toa que o homem tem esses óculos fundo de garrafa…

Olhei bem para ela e sorri concordando. A voz metálica anunciou a minha estação: “Liberdade“. Desci e pude respirar, aliviado, um ar mais fresco que aquele dentro do vagão, morno e sufocante.

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2 Respostas to “Viagem de Metro”

  1. edna Says:

    “A luz caiu sobre todos” …
    Isso define bem o que penso sobre céu e inferno!
    Observar a vida assim…de cara lavada, sem maquiagem é o melhor de tudo…Uma simples caminhada pode ser tão enriquecedora para o nosso desenvolvimento interior…
    Aprender a usufluir do dia sem pressa pode ser uma experiência e tanto…
    Descer na “Liberdade” depois de tanto livre pensar! rs
    Linda a imagem…
    Adorei a história Chico…Muito boa!
    Bjss

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