Seu Ivan

É um defeito meu querer me ocupar, estar sempre fazendo algo útil e produtivo. Na verdade é mais que um defeito, é pior, é um vício disfarçado de virtude. Porque o se ocupar é visto como uma boa qualidade no meio em que fui criado. Existe até um dito popular que afirma – O ócio é a oficina do diabo. Imagino que isso tenha um peso enorme sobre a consciência da maioria das pessoas, ninguém questiona, é como se esta informação já viesse impressa no DNA.

Definitivamente, a sociedade não vê com bons olhos um ser desocupado e eu, como a maioria, prefiro não ser visto com maus olhos, de modo que procuro me ocupar o tempo todo… Ou procurava, até sexta feira passada, quando eu perambulava pelo centro da cidade, esperando que o mecânico desse um jeito no suspiro do tanque de combustível do meu carro, que estava entupido.

Como o conserto deveria ser rápido, coisa de umas duas horas, decidi não percorrer os 7 km de volta pra casa e fiquei ali pelo centro mesmo, passeando entre os camelôs que agora infestam a região. Percorri as bancas montadas na praça, em frente à Igreja Matriz e uma passada de olhos rápida nos títulos dos DVDs não me mostrou nada interessante, só blockbusters. Eu já havia caminhado uns 20 minutos, com uma pesada mochila às costas (por causa do computador, caso eu resolvesse trabalhar um pouco enquanto esperava), e procurei um banco sob as árvores, para descansar. Mas cadê que eu encontrava um banco vazio? Estavam todos ocupados por… desocupados! Daquele tipo de desocupados que você vê que não estão fazendo nada mesmo. Um pensamento rápido me passou pela cabeça – “Será que essa gente não tem mais o que fazer da vida além de se sentar num banco de praça?” Ao mesmo tempo que tive a impressão de que eles me olhavam como se eu fosse um estrangeiro perdido, recém-chegado ao país dos desocupados…

Que fazer? As costas já me doíam, eu estava a ponto de me sentar ali no chão da praça mesmo quando me lembrei que dentro da igreja há bancos, e que além de ser bem fresquinho, seria também um descanso para os ouvidos. Adentrei o templo quase vazio, sentei-me no ultimo banco, depositei a mochila a meu lado e pude, finalmente, relaxar. Respirei fundo um par de vezes, tentei meditar, mas foi impossível, não consegui ficar parado, observando o ar entrando e saindo das minhas narinas. Senti uma vontade irresistível de abrir o computador e começar um relato sobre as minhas impressões do centro da cidade. Mas eu não podia fazer isso ali, seria muito desrespeitoso. Quer dizer, poder eu podia, mas não queria que me expulsassem do templo como Jesus fez com os vendilhões, isso não! Quem sabe um banco não havia vagado na praça?

Saí da igreja e procurei um banco, mas ainda não havia nenhum lugar vago. Na verdade havia chegado mais gente, a cidade começava a se encher, o sol cada vez mais quente e eu cogitei voltar pra casa. Já ia caminhando na direção da  rodoviária, pra pegar o ônibus, quando dei de cara com um salão de beleza e lembrei que meus cabelos já tinham sido objeto de crítica por mais de uma pessoa nos últimos dias. Resolvi aproveitar então a oportunidade. Entrei no salão e passei reto por um homem que estava na porta, com um olhar fixo de quem parecia estar muito longe dali. A cabeleireira que fazia o penteado de uma perua me informou que quem cortava cabelo masculino era o senhor de olhar fixo, aquele por quem eu tinha passado na entrada.

Me aproximei do senhor de olhar fixo e perguntei se podia cortar meu cabelo. Ele me respondeu com um sorriso e apontou a cadeira de barbeiro vazia. Seu Ivan, um moreno escuro, esguio e quase sem cabelos brancos, não tinha pressa nenhuma, fazia tudo com uma lentidão bahiana. No papo, descobri que ele era mesmo bahiano, nascido em Valença, ao sul de Salvador. Descobri também que ele tem quase 80 anos, aparenta apenas 60 e que adora conversar. A cada pergunta que eu fazia, Seu Ivan interrompia o corte, se postava à minha frente e respondia com uma minúcia virginiana. O que ele me contava era tão interessante que, por mais que eu tentasse, não conseguiria me irritar com a lentidão do homem… Eu escutava tudo e ainda perguntava mais.

Primeiro quis saber o que estava procurando o seu olhar distante, aquele que eu notei quando entrei.

__Nada, moço, eu não procurava nada, não. Estava é assistindo o filme da vida, minha diversão enquanto não corto cabelo – assim dizendo, colocou-se à minha frente e fez um discurso sobre a pressa que os paulistas tem no sangue e ele , como bahiano há mais de 50 em solo paulista, ainda não conseguiu entender. Ele continuou…

__Já fiz foi perguntar para todo tipo de gente. E foi gente importante, assessor de prefeito, professor de faculdade, filósofo, eles dizem que isso não é coisa para se entender, é da natureza do povo aqui do sul, dos descendentes de europeus.

Depois, eu quis saber como é que ele mantinha a forma, se fazia algum exercício para manter aquela forma aos 80 anos.

__Meu exercício é andar de casa até o trabalho, do trabalho de volta pra casa.

Imaginei que ele morasse longe, alguns kilometros, no mínimo.

__Moro não, minha casa é a duas quadras daqui, ao lado do Mercado.

__Mas como é que o senhor mantém essa forma, assim, magrinho e esperto?

Mais uma vez ele parou a tesoura, foi para minha frente e me contou tim tim por tim tim, como é que ele mesmo preparava, todos os dias, seu café da manhã, almoço e janta, que esse era o segredo da sua saúde de ferro. Que pão branco com manteiga ele não comia, que isso faz é muito mal à saúde! Comer fora, segundo  ele, é muito arriscado, nunca se sabe o que vai pela cabeça do cozinheiro enquanto prepara a comida… Eis o relato resumido:

__Primeiro eu cozinho duas bananas compridas bem maduras, ou pode ser um inhame grande, mas os dois tem que ser com a casca. Quando ficou molezinho eu descasco, coloco num prato, ralo meio coco fresco, adiciono uma pitada de sal, outra de açúcar e pronto, é o meu café, que tomo desde menino. No almoço é feijão de corda verde (quando tem, senão é maduro mesmo), arroz e mistura, mais um jerimum ou uma couve, ambos refogados. De noite é só uma sopa, pode ser do que for, mas tem que ser sopa. E sobremesa não me dou o luxo, isso é coisa para o paladar de gente mimada.

__Mas e nem uma frutinha de vez em quando, Seu Ivan? – perguntei pois havia visto uma maçã ao lado dos seus apetrechos de barbeiro.

__Fruta eu trago sempre aqui pro trabalho, como só quando o estômago reclama.

__E remédio, o senhor toma algum medicamento, Seu Ivan?

__Tomo não, isso de remédio é perdição, o sujeito começa com um e dali a pouco é uma renca que ele tem que tomar. Não presta, não!

Seu Ivan ia me contando tudo isso enquanto cortava minha sobrancelha, aparava os pelos que saem do nariz e do ouvido, coisa que nenhum barbeiro jamais fez comigo. Lavou meus cabelos com xampu e deu finalmente por terminado. Ficou muito bom, gostei do corte e perguntei a ele onde tinha aprendido, onde ele tinha feito curso de barbeiro.

__Na vida, meu filho, aprendi olhando o barbeiro na minha cidade, comecei a cortar quando tinha 15 anos e nunca mais parei.

Revelando todo meu preconceito, perguntei a ele se nunca quis estudar para ser outra coisa na vida. A resposta veio à altura:

__Mas eu estudo, meu filho, eu estudo cada pessoa que senta nesta cadeira e aprendo com cada uma delas.

Aquilo me desconcertou e eu não pude evitar de abrir um sorriso para aquele bahiano mais do que sossegado. Nesta hora, tocou o celular, era o mecânico avisando que o carro já estava pronto.

__Mas já está pronto? Você não falou duas horas? – indaguei surpreso.

__Mas já passou mais que isso, Chico! – me respondeu o mecânico.

Olhei para o relógio e me dei conta, havia passado uma hora e meia na cadeira do Seu Ivan, tomando um curso intensivo de relaxamento à moda bahiana. Paguei o corte e saí para a rua. Decidi não ir direto para o mecânico. Sem pressa, tomei um caminho mais longo e passei no Mercado para comprar uma penca de banana comprida e um coco maduro, só para experimentar…

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