
Conheci Dona Cida da maneira mais prosaica possível, durante o coquetel de lançamento de um livro sobre direitos dos idosos, numa livraria de São José dos Campos. Fomos apresentados um ao outro e, logo depois da terceira ou quarta frase pronunciadas por aquela senhorinha de vívidos olhos azuis e um corpo de fazer inveja a qualquer adolescente vaidosa, tive a certeza de que ela não poderia ficar de fora deste livro que você agora lê.
À queima roupa já fiz o convite, e ela, faceira, ainda fez graça comigo ao dizer que eu tinha que conhece-la melhor primeiro, pra saber se ia gostar da sua pessoa. Como é que eu poderia não gostar de uma figurinha despachada como aquela, uma mulher que aos 87 anos ainda está inteirinha, com a saúde em dia, praticamente não toma remédio, dirige seu próprio carro e ainda se mantém ativa fazendo trabalho voluntário? Foi um caso típico de amor à primeira vista! Eu dei foi um bom abraço nela e disse:
__Cida, mas eu já gosto de você!
Não consegui chamá-la de “Dona Cida”, ela parecia ter a mesma idade que eu!
__Vamos marcar a primeira entrevista? Me dá o seu telefone…
Anotei o numero num guardanapo de papel, liguei para ela no dia seguinte e, no fim daquela semana, lá estava eu batendo palmas no portão da casa onde ela mora, no Jardim Satélite, um bairro de São José dos Campos que ainda consegue manter um pouco daquele encanto das cidades de interior de antigamente.
Encontrei-a lendo um desses livros de bolso, muito gasto, páginas amareladas, que inicialmente eu tomei por uma Bíblia. Mas que nada! Tratava-se de um relato histórico de André Maurois, A História da Inglaterra, só que escrito em francês! Seria possível que ela estivesse lendo aquilo, me perguntei! Curioso e querendo testá-la, soltei umas frases na língua de Voltaire. Para meu espanto ela respondeu na lata, e, assim, fiquei sabendo que Dona Cida não só lia, como também falava o francês fluentemente! E mais, era íntima do inglês, do italiano, do espanhol e de quebra arranhava algum alemão. Uau! A minha biografada não parava de me surpreender! Definitivamente, eu havia feito uma boa escolha!
Nas várias vezes que retornei à sua casa para entrevista-la, Dona Cida continuaria a me surpreender. A cada vez, eu saia de lá renovado, com sensação de ter tido o imenso privilégio de privar com uma alma abençoada, uma mulher positiva e de bem com a vida, para quem a idade era um mero detalhe. O que você vai ler abaixo é apenas um resumo do que ela me contou nesses nossos encontros, sempre regados a café com leite e biscoitos diversos. A vida dessa mulher é tão cheia de peripécias e fatos interessantes que daria um livro delicioso! Enquanto esse livro não acontece, deixo vocês com um não menos saboroso aperitivo… ______________________________________________

Mariinha tinha 2 anos quando seu irmão Luis anunciou aos pais que iria morrer em breve. Dona Olívia fez pouco do anúncio, achou que era bobagem do filho, então com 4 anos. O garoto chegou a recusar brinquedos que quiseram dar para ele, alegando que não ia dar tempo de brincar com os mesmos. Uma semana depois do anúncio, ele acordou dizendo que o dia havia chegado e que já tinha até visto rondando por ali o anjo que viera busca-lo. Na noite daquele mesmo dia o menino estava morto…
Dona Olívia e Seu José ficaram inconsoláveis, já era o 6º filho que perdiam, todos eles com idade inferior a 2 anos e sem nenhum motivo aparente, simplesmente morriam. Sobrara-lhes apenas Mariinha, e a se acreditar na profecia que fez o recém falecido, momentos antes de morrer, ela e todos os outros 4 que ainda viriam ao mundo através do casal iriam sobreviver, chegar à idade adulta e dar-lhes muitas alegrias. De fato, a profecia tornou-se realidade, depois da morte de Luis, em 1926, Deus apiedou-se do casal e não roubou-lhes mais nenhuma criança.
Mariinha foi criada solta, brincando descalça, com outras crianças nas ruas de terra ao redor da Rua Rui Barbosa, a via que ligava o bairro de Santana ao centro da cidade. Mas os arredores da casa não eram suficiente para a insaciável curiosidade da menina de 3 anos, ela queria mais, muito mais. Um belo dia ela resolveu seguir na direção da cidade, cruzou o viaduto, a linha do trem, subiu até a Igreja Matriz, continuou pela Rua XV e foi dar na linha velha do trem, onde hoje é a Faculdade de Direito, um trajeto de quase 5km! E lá ficou, esquecida de tudo e de todos, extasiada pela visão daquele trem comprido, puxado pela imponente Maria Fumaça…
Quando deram pela falta de Mariinha foi um fuzuê; procuraram no poço, no rio, na lagoa nos fundos da casa, nas casas dos vizinhos, e nada da menina… Enquanto isso, bem longe dali, feliz da vida, Mariinha foi reconhecida pelo doceiro ambulante, que vendo aquele toquinho de gente desacompanhado, perguntou o que ela estava fazendo ali, tão longe de casa. A resposta não poderia ser mais desconcertante:
__”Eu estou conhecendo o mundo, Seu Valentim!“.
Já de volta à casa, diante dos pais chorosos mas aliviados com o retorno da única filha, Mariinha declarou entusiasmada e orgulhosa da façanha:
__”Mãe, eu vi o mundo e ele é grande!“.
Não tendo recebido punição pela fuga, ela tomou gosto pela coisa. Não demorou muito e a menina escapou novamente, embarcando na carroceria de um caminhão, desses que iam recolhendo leite de fazenda em fazenda. Desta vez Mariinha foi vista em cima da carroceria por uma vizinha, que foi correndo avisar Dona Olívia, mas era tarde, o caminhão já ia longe. Num piscar de olhos, Dona Olívia foi à pé até a Igreja Matriz e alugou o único carro de praça que havia na cidade e zarpou ao encontro da filha. Ao longo da estrada de terra que liga São José Campos à Monteiro Lobato, desesperada, ela ia incitando o motorista para que acelerasse mais o seu Fordinho T. Mas só conseguiram alcançar a menina 30 km adiante, já em Monteiro Lobato, perambulando e morta de fome, na praça principal da cidade vizinha.
Desta vez a travessura da menina não passou em branco, houve punição. Ninguém bateu nela, mas não houve remédio, tiveram que amarrar com cordas o calcanhar da arteira, ao pé de uma pesada mesa de madeira que ficava na cozinha, um castigo que se repetiria ao longo de toda infância de Mariinha. Na primeira vez que a prenderam à mesa foi fácil, ela era pequeninha, mas quando cresceu não se deixava apanhar com facilidade. Quem quisesse pega-la tinha que se livrar de suas poderosas dentadas. A menina mordia e mordia muito forte! Diz a lenda que a sólida dentição da pequena fera era fruto de uma simpatia; haviam passado o leite de uma cadela preta em suas gengivas, no intuito de aliviar as dores que lhe provocavam os primeiros incisivos que apontavam…
Mariinha tinha 3 anos quando nasceu seu primeiro irmão. Reparando que o bebe tinha olhos azuis e que isso era motivo de júbilo por parte dos parentes que vinham visitar o recém-nascido, quis saber o por que dos olhos dela serem castanhos e não arrancarem elogios de ninguém.
__Minha filha, os olhos dele são azuis por causa dos bichos de goiaba que eu comi durante a gravidez – respondeu a mãe.
Mariinha não teve dúvida, passou uma semana comendo as goiabas do chão do quintal, repletas de larvinhas brancas, mas não conseguiu ver nenhuma mudança na cor dos seus olhos… Alguns meses mais tarde, Mariinha se deu conta de que o bebê era anatomicamente diferente dela, e novamente indagou da mãe o por que de tal diferença. A mãe, querendo aproveitar a oportunidade para sossegar o pito da menina, disse que o bebê era homem porque era quietinho e obediente. Pois Mariinha passou a semana inteira quietinha e bem comportada, mas cadê que ela virava homem? Ela se mirava no espelho e nada, continuava igualzinha ao que sempre fora. Mariinha ficou desolada com a constatação da diferença, aquilo mexeu profundamente com ela. Tanto que, à partir de então, para compensar a falta anatômica, passou a se comportar, deliberadamente, como um homem.
E essas duas tentativas frustradas foram o bastante para que Mariinha passasse a desconfiar do que diziam os adultos e não mais acreditasse em qualquer coisa que saísse da boca dos homens…
Uma moleca como Mariinha não via graça na companhia de meninas e a única que tinha a idade dela era gorda e não conseguia acompanha-la nas brincadeiras… De modo que suas amizades eram masculinas, em sua maioria absoluta, e era com os garotos que ela roubava frutas, apostava corrida de bicicleta, brincava de pega-pega na mangueira e caçava besouros para fazer trenzinho, amarrando os pobres bichinhos a uma fieira de caixas de fósforos cheias de pedrinhas. Mas o mais divertido era pegar os cavalos de um carroceiro que largava os animais pastando na beira da lagoa, enquanto ele enchia a cara no bar. Mariinha e os garotos se esbaldavam montando em pelo na cavalada. Quem não gostava nada daquilo era Dona Olívia, que tinha o trabalhão de dar um bom banho de bacia na filha que voltava fedida e com os pés encardidos de barro…
Dona Olívia era uma pessoa paciente e pacata, aturava as artes da filha sem jamais ter levantado a mão contra ela. Seu José era o oposto, quando chegava do trabalho na Tecelagem Parahyba, onde trabalhava como marceneiro, comandava tudo só com o olhar. Bastava a presença austera do mineiro de Joanópolis para que os 5 filhos se comportassem como se estivessem num colégio interno. Seu José nunca bateu nos filhos, salvo uma vez que Mariinha irritou tanto o velho que acabou levando umas cintadas. Mas só porque ela deixou, pois nas primeiras tentativas Mariinha saltou mais alto que a cinta e Seu José encontrou somente o ar! Vendo que a coisa ia piorar se ela não cedesse, acabou, finalmente, deixando ele acertar algumas cintadas…
Já de criança, Mariinha demonstrou interesse e grande habilidade no trato com o dinheiro. Como gostasse muito das guloseimas que eram vendidas pelos bares no caminho, deu um jeito de ganhar uns tostões para poder compra-los. Todo domingo, bem cedinho, ela passava na casa de Dona Chiquinha, enchia um cesto com alface e ia vender as verduras ao lado da igreja. Para as costureiras que tinham a vista cansada, ela enfiava linha na agulha, e cobrava um tostão para cada 12 agulhas que preparada com as linhas. Mais tarde, como era boa de escrita, fazia às escondidas as redações das colegüinhas e recebia em espécie; cadernos, lápis de cor, borrachas, fitas, tiaras, etc…
Na véspera do seu primeiro dia de escola, de tão ansiosa que estava, Mariinha mal pegou no sono e quando escutou o pai saindo, às 5h da manhã para o trabalho, saltou da cama e foi correndo vestir o uniforme, uma saia de pregas e uma blusa branquinha, que sua avó havia cuidadosamente preparado para ela. A aula só ia começar às 8h e nesse meio tempo ela resolveu ir brincar na rua. Acontece que tinha chovido e lá fora estava um barro só. Clero que ela caiu, se sujou da cabeça aos pés, o uniforme ficou todinho marron do barro, ela teve que botar uma roupa comum e quase foi impedida de comparecer ao seu primeiro dia de aula…
Era de se esperar que uma moleca tão arteira como Mariinha não fosse morrer de amores pela escola. Pois aconteceu justamente o contrário, depois que passou a frequentar o II Grupo Escolar de São José dos Campos a menina sossegou. Encontrou nos livros uma janela para o mundo, parou de fugir de casa e tornou-se uma menina mais centrada. Mergulhou fundo na leitura e chegou mesmo a aprender francês por conta própria, com a ajuda de um método que ela guarda com carinho até hoje, presente do seu professor no 3º ano primário.
Festeira que era, não perdia nenhuma oportunidade de se apresentar no palco da escola, nas comemorações cívicas e religiosas. Mas Mariinha não havia largado totalmente seu lado moleca; no Dia das Aves, durante a declamação de poemas, havia um momento em que se soltava passarinhos, uma maneira de mostrar o valor da liberdade. Adivinhem quem é que tinha uma arapuca e capturou os bichinhos no mato? Sim, ela mesma, a Mariinha!
De resto, ela era uma menina comum, com o sonho de um dia ser professora. Em casa, mais responsável agora, ajudava a mãe a criar os irmãos mais novos. Ia ao cinema de vez em quando e colecionava fotos de moças e rapazes, recortadas da revista O Cruzeiro, com as quais enchia de alto a baixo as paredes do seu quarto.
Apesar de frequentar o “footing” da Praça de Santana, os assuntos do amor não faziam parte das suas prioridades, na verdade nem estavam nos seus planos. Mas lá pelo 5º ano do ginásio apareceu o Pedrinho, um rapaz que foi “sugerido” como um bom partido pelos parentes dela e dele, uma maneira de juntar as duas famílias. Começaram o namoro, mas a coisa estava fadada ao fracasso, Pedrinho era ciumento demais e Mariinha não havia nascido para ser propriedade de homem nenhum. Volta e meia ele batia com o cabo do relho da montaria na porta da casa dela, informado que havia sido por um olheiro, querendo saber quem era fulano ou sicrano, que fora visto simplesmente conversando com a moça. Um dia ela se encheu com essa palhaçada, foi até a porta e gritou decidida:
__”Suma daqui já e eu nunca mais quero ver a sua cara, seu abusado!”
Namoro de verdade, de pegar na mão e com troca de olhares romanticos, só aconteceu bem mais tarde, quando Mariinha já estava cursando o Normal. Dona de casa ela já sabia que não queria ser, por isso mesmo estava cursando o Magistério. Sendo professora ela teria um trabalho digno e poderia ganhar seu próprio dinheiro, se livrando, assim, da dependencia que acorrenta as mulheres que são sustentadas pelos maridos.
Mas a moça, inquieta que era, não agüentou esperar o diploma de normalista e seguir como professora. Um dia, um professor do curso avisou-a de uma vaga para secretária no Aeroclube de São José dos Campos, que ficava do outro lado da cidade. Candidatou-se, conseguiu o posto e foi assim que acabou conhecendo seu futuro marido, Renato Becker, fundador do clube, um dentre os 53 senhores da sociedade joseense que assinaram o documento de criação do mesmo. Alguns desses senhores, caso de Renato, eram movidos pelo sincero desejo de aprender voar, mas outros, pelo sentimento patriótico de colocar o Brasil em pé de igualdade com outras nações mais adiantadas na aviação. Era tempo de guerra e o país tinha todo interesse de formar pilotos, incentivando a criação desses pequenos aeroclubes e facilitando o fornecimento de aviões de treinamento.

Nessa época, Renato não era instrutor de vôo, mas como a nova secretária houvesse demonstrado interesse por tirar o brevê, arrumou um jeito de ser ele quem deu à moça as primeiras lições de pilotagem no Paulistinha, o avião que era usado para aprendizado no Aeroclube. A atenção dispensada pelo instrutor não passou desapercebida pela aluna. Na seqüência vieram convites para sessões de cinema, passeios, sorvetes, que acabaram culminando com um pedido formal de namoro ao pai da moça.
Seu José Lopes de Campos mandou vir o pretendente. Vestidos todos a caráter, sentaram-se os tres na sala de estar, o pai, a filha e o futuro genro. O que estaria querendo com Mariinha aquele empresário trintão, sócio da Cerâmica Becker, fabricante de tijolos e telhas na cidade de São José dos Campos? Ele precisava certificar-se, olho no olho, de que não se tratava apenas de mais uma aventura de um playboy endinheirado da cidade, querendo aproveitar-se de sua filha. Um tanto quanto nervoso, devido às diferenças, de idade e de condição social, perguntou:
__Meu caro, quais são suas intenções com minha filha Maria Aparecida?
Renato fez o melhor discurso que pode e garantiu sua seriedade, disse que suas intenções eram as melhores e que queria muito constituir família com Mariinha. Ao que o pai respondeu:
__Bem o senhor já falou com ela? Sim? Então, se é do gosto dela, por mim podem namorar.
Com pouco tempo de namoro, Mariinha confirmou que Renato era um homem sério e que preenchia os todos os requisitos que ela julgava essenciais naquele que pretendesse ser seu marido. Assim, seis meses depois, às 10h da manhã, numa cerimônia discreta, celebrou-se o enlace, na pequena igreja de Santana, seguido de um café da manhã servido na casa da noiva. A família do noivo, embora fosse abastada, era de gente trabalhadora que punha a mão na massa e não gostava de ostentar. Portanto, concordaram de bom grado fazer tudo da maneira mais simples possível. Mas a lua de mel seria bem diferente, nem um pouco simples. Os noivos partiram para Poços de Caldas, um destino até que comum entre os recém casados. O diferente foi o meio de transporte, o avião, e a pessoa que o pilotou. No controle do manche, já com o seu brevê, estava a intrépida Mariinha, que exigiu ocupar o assento da frente do Paulistinha!
Ao aterissarem, porém, um imprevisto; aquela aeronave não tinha permissão para voar e teve que ficar retida na cidade de Poços de Caldas, de modo que, terminada a lua de mel, o casal teve que se sujeitar a uma viagem de ônibus. Liberar o avião não foi tarefa fácil, o que só se conseguiu com a intervenção do amigo do noivo, o influente empresário Assis Chateaubriand. Um piloto do Aeroclube, o instrutor Luis Ribeiro dos Santos, foi designado para buscá-lo, pousou em São José dos Campos e pouco tempo depois o motor explodiu, destruindo completamente esta parte da aeronave. Mariinha sentiu a mão de Deus neste aparente contratempo, o acidente poderia ter acontecido com eles a bordo…

O casamento com Renato lançou Mariinha num universo totalmente novo, à partir de agora ela fazia parte da alta sociedade joseense. O casal instalou-se na ampla residencia que ficava ao lado da Cerâmica Becker, na periferia da cidade, onde Renato ocupava o cargo de gerente. O lugar era longe de tudo, já na zona rural, e a nova dona de casa teve que fazer das tripas coração para receber bem os sogros, cunhados e os não poucos amigos e convidados do marido.
Naquela casa respirava-se aviação e havia até um cômodo, denominado Quarto da Aviação, onde eles hospedavam os amigos aviadores que vinham de São Paulo, Rio de Janeiro e sul de Minas Gerais. Consta que naquele quarto dormiram, dentre outros, o Brigadeiro Neiva, Comandante da 4ª Zona Aérea e a intrépida Ada Rogato, a primeira mulher a obter licença como paraquedista e volovelista no Brasil.
Adaptar-se à nova vida não foi nada fácil para Mariinha, que não tinha experiência alguma na administração de uma casa e além disso não contava com ajuda de empregados, embora Renato desse uma mão de vez em quando. Ela havia aprendido muito rapidamente a botar um avião no ar, mas pilotar a casa e principalmente a cozinha, ah! isso foi bem mais trabalhoso… Por sorte, a exigente sogra era uma cozinheira de mão cheia, estava sempre por perto, e Mariinha pode aprender muito com seus conselhos e sugestões… Se descontarmos as empadinhas recheadas de formigas e algum feijão que se queimou, Mariinha até que se saiu bem na cozinha…
Com a chegada dos filhos, o trabalho só aumentou, mas Mariinha tinha como ponto de honra não pedir ajuda nem à mãe nem à sogra, jamais largou os filhos com nenhuma das duas. Nem quando algum deles caia doente. Desde pequena ela se interessou por plantas, herança da avó que conhecia bem as ervas medicinais e Mariinha orgulha-se de nunca ter dado remédio de farmácia aos 3 filhos que tiveram, Tania, Renato e Ricardo, nascidos nesta ordem. No começo, ao ve-la preparar os chás, Renato ficou espantado:
__”Eu sabia que você era meio índia de Santana, mas não que era curandeira!”
Criança com tosse? Dá-lhe chá de flor de mamoeiro. Criança com febre? Dá-lhe chá de sabugueiro. Vermes? Chá de hortelã. E não era só com as ervas, Mariinha cultivava sua couve, seu cheiro verde e conhecia bem os matos comestíveis; serralha, caruru, taioba, bertalha, etc…
Quando a filha mais velha completou dez anos, Mariinha resolveu que era hora de tirar o pó do seu diploma de professora. A justificativa que ela deu para o mundo e para si mesma é que não era justo uma mulher ficar em casa feito uma dondoca. Não é certo uma mulher que depende do marido, pensava ela. Mas se hoje a vida do professor não é fácil, naquela época era ainda pior. Para um professor começar a ser fazer jus a um salário, tinha que trabalhar de graça por dois anos, acumular um determinado numero de pontos, para só então ter o direito de requerer uma docência remunerada. Para tanto, adaptou-se a igrejinha da Cerâmica, transformando-a em escola, e foi lá que Mariinha passou dois anos dando aulas, até alcançar o numero necessário de pontos. Durante esse período, ela não recebeu um tostão pelas aulas.
Tão logo atingiu os pontos, solicitou uma vaga numa escola estadual, mas tudo que conseguiu, o que sobrou para ela, foi um posto na Escola Mixta do Bairro de Cambaquara, ponta sul da longínqua Ilha Bela, onde só se chegava de barco. Ela não se deixou intimidar, a Ceramica estava mal das pernas e ela se sentia na obrigação de contribuir finaceiramente. Mandou a filha mais velha para um internato em Taubaté, deixou os outros dois com o marido e partiu para a grande desafio de dar aula numa escola que há dois anos não encontrava um professor com coragem suficiente de se aventurar por aquelas bandas…
Lá chegando, Mariinha entendeu o porque de ninguém querer dar aulas naquela escola. O prédio era de barrote (pau-a-pique), muito velho, construído no tempo do Império e caindo aos pedaços. Funcionava como moradia na parte de cima e casa de farinha na parte de baixo, com todo jeito de nunca ter passado por uma reforma. Banheiro dentro de casa não existia, era preciso uma longa caminhada num percurso cheio de cobras e borrachudos, para se aliviar. O quarto que deram para ela era tão cheio de pulgas, que Mariinha tinha que encher seus lençóis de Neocid antes de se enfiar neles para dormir. A dona da casa ficou apavorada com aquilo e para se resguardar, obrigou a professora a assinar um documento, se responsabilizando por uma eventual morte por envenenamento…
Para conseguir dar as aulas, ela tinha que se proteger doa borrachudos, deixando de fora somente os olhos e os dedos, para poder enxergar e poder pegar no giz! Mas as crianças já estavam acostumadas, não se incomodavam com as picadas. Quando iam ao quadro negro escrever qualquer coisa, ao sair deixavam a marca do pezinho delineada com o sangue que escorria de suas perninhas, pretas de tantos borrachudos.
Mariinha tinha muita saudade de casa, mas só podia sair de lá uma vez a cada mes e isso quando o mar permitia. De vez em quando dava sorte pegava carona no barquinho a motor do seu Santinho, entre bananas, aranhas e cobras, com água pelas canelas e uma cuia na mão para jogar a água que entrava pelos furos da embarcação. Uma vez ela viu uma cobra no meio das bananas e perguntou ao seu Santinho se tinha algum perigo. O pescador, muito calmo, respondeu:
__”Já olhou a linguinha da bicha? Se for verde não tem o que temer…”.
O ano e meio que ela passou dando aulas na Ilha Bela foi um verdadeiro curso de sobrevivência na selva…
Depois dessa experiência e agora com mais pontos e tempo de casa, ela finalmente conseguiu transferência para São José dos Campos, numa escola rural novinha em folha, dessa vez com banheiro no mesmo prédio. Para ir à escola, Mariinha pegava um dos caminhões basculantes da Cerâmica, que era usado para transportar o barro das telhas e tijolos. Como ia sozinha, dava carona para os alunos que moravam ao longo do percurso. Ela era boa motorista, mas não muito íntima dos caminhões. Um dia, curiosa com uma alavanca no painel, mexeu nela, e o que ouviu em seguida foi só a criançada gritando. A alavanca acionou a caçamba e as crianças foram todas despejadas para fora do caminhão. Por sorte havia areia onde elas caíram e elas sofreram apenas alguns arranhões…
Com os filhos já criados e a vida mais tranquila, Mariinha e Renato puderam cuidar melhor de si mesmos. Passaram a viajar pelo Brasil, sempre buscando conhecer a cultura popular, pesquisando e colhendo material que Mariinha registrava em cadernos escolares e depois usava em sala de aula. Quando tudo pareciam flores, Renato morre de infarto em Belo Horizonte, durante uma viagem em que fora fazer um tratamento de acupuntura, por causa de uma dor de cabeça que o acompanhava desde criança. Mariinha sentiu o chão sumir sob seus pés, ver-se subitamente privada do marido, ele que sempre fora uma referência na vida dela! Mas não deu tempo nem de chorar, a absurdidade dos trâmites burocráticos envolvendo o traslado do corpo tomaram um tempo e energia enormes e tornaram a vida da viúva num inferno. Foram tantas decisões em tão curto espaço de tempo, que foi como se as lágrimas tivessem secado dos seus olhos.
Para piorar, em alguns meses sairia a aposentadoria que ela havia requisitado e ela ficou sem uma atividade que poderia ajuda-la a esquecer da sua miséria. Ou seja, naquele momento, tudo que Mariinha podia ver a sua frente era um vazio, e ela sabia que precisava preenche-lo urgentemente.
Na tentativa de se ocupar e dar um sentido a sua vida, foi trabalhar como voluntária no Hospital São Francisco, em Jacareí, embalando doces, costurando e remendando aventais e lençóis. Mas não era isso que ela queria para sua vida, essas coisas qualquer pessoa podia fazer. Em paralelo, ela também se dedicava à alfabetização de idosos, trabalho que ela gostava muito e ajudava a passar o tempo, mas que não resolvia o problema das asinhas que ela tinha nos pés! Ainda estava faltando alguma coisa…
E essa coisa tinha a ver com aquela Mariinha criança, aquela que um dia fugiu de casa e quis conhecer o mundo. Assim, ela teve a brilhante idéia de começar um curso para ser guia de turismo na cidade de São Paulo, na ABL, uma renomada instituição de ensino no ramo. Como o curso não ocupasse todo seu tempo, aproveitou para tomar lições de italiano e espanhol, numa escola no bairro do Tucuruvi. Fez isso durante 3 anos. Chegou a trabalhar um pouco aqui no Brasil, mas as asas queriam voar mais alto e ela não deixou passar a oportunidade tão logo surgiu; com a desculpa que uma amiga precisava de companhia, lá foi ela numa excursão para a Roma, sua primeira viagem ao exterior. Fascinada com Cidade Eterna, resolveu ficar por lá e não voltou com a turma. Com pouco dinheiro que tinha, alugou um quarto numa pensão e começou a trabalhar como guia, valendo-se do italiano que ela havia aprendido no Brasil, que ela achou pouco e reforçou com um curso intensivo em Firenze.
Terminado o curso, as coisas foram dando muito certo para Mariinha e o trabalho foi aparecendo como se fosse mágica. Seu primeiro trabalho ela conseguiu sozinha, abordando uma turista que desembarcava do trem na estação em Roma! Depois passou a trabalhar para agências, aprofundou-se no italiano e em tres tempos estava levando turistas para a França, Portugal e Holanda. O ingles que ela estudou com uma amiga holandesa, esposa de um professor do ITA, foi de grande serventia nessa hora, além do espanhol e frances que ela andou aprendendo por conta própria ao longo da vida.
Durante quase 30 anos, Mariinha ficaria viajando entre o Brasil e a Europa, às vezes trabalhando de guia, às vezes visitando amigos e parentes que lá moravam. No Brasil, sua viagem mais marcante foi o passeio de gaiola no Rio São Francisco. Foram dias dormindo em rede e convivendo com todo tipo de gente. Um belo dia, roubaram a toalha de seu companheiro de viagem, um ex seminarista que recém desistira de ser padre e estava fazendo seu primeiro contato com o mundo exterior. Mariinha não se intimidou, deu uma de detetive e desconfiada de um grupo de maconheiros, esperou que eles estivessem dormindo, foi fuçar na bagagem deles e lá estava a toalha! No fim da viagem, ela recebeu o título de Miss Santa Bárbara, talvez porque o povo achou ela fosse muito pura, de não querer tomar banho com água do São Francisco. Ela preferia se limpar com água mineral de Campos do Jordão, que comprava a preço de ouro no bar da embarcação. Mas não se tratava de frescura e sim de preservar sua saúde, pois ela havia reparado que a captação da água para uso geral, era feita abaixo da saída do esgoto dos banheiros!
Mariinha só foi parar seu vai-e-vem de viagens aos 80 anos, e isso porque um neto seu se separou e as crianças ficaram nas mãos de uma babá abusada, que botava sonífero na mamadeira dos pequenos… Ela resolveu tomar para si a tarefa de cuidar das crianças e deu por encerrada sua fase de guia de turismo. Mesmo porque, sua coluna já não estava mais parando em pé sozinha e teve que passar por uma cirurgia, na qual foram colocados 4 pinos na lombar, e amortecedores entre algumas vértebras. O corpo começava a dar sinal que já não estava agüentando o frenético ritmo de sua dona… Já não é mais o mesmo corpo que uma vez, no Metrô de São Paulo, sob os olhares atônitos dos fiscais, pulou a catraca porque estava emperrada e não teve a paciência de esperar alguém que viesse liberar!
Hoje, além de ajudar quando a família precisa, ela ainda frequenta dois centros para idosos em São José dos Campos. Num deles ela faz a contabilidade, que ela chama de escrituração, e no outro é uma usuária comum, se é que existe alguma coisa nessa mulher que possa ser chamado de comum… Nestes centros, ela organiza bingos, palestras e artesanato, além da atividade que é sua menina dos olhos, a alfabetização de idosos. Quando pode, ela dá uma de atriz nas peças que eles apresentam nos fins de ano (vide foto de Cida de anjo).
Nas horas vagas ela ainda encontra tempo para ler, bordar, cuidar de suas plantinhas, estudar e traduzir livros. Já traduziu 3 (* >> colocar no pé da página o nome dos livros >>> Livro dos Mediuns, Genese, O que é o Espiritismo?), todos eles de Alan Kardec, do francês para o português, tendo recebido apenas uma remuneração simbólica e abrido mão dos direitos autorais como tradutora. Ou seja, ela fez por amor à arte.
Diz que gostaria de ser mais inteligente, para poder compreender melhor o mundo em que ela vive. Em muitos aspectos, Mariinha é uma mulher do seu tempo, informada e participante, mas ainda gosta de escrever cartas como antigamente, e é assim que se comunica, entre outros, com sua amiga nonagenária que vive na Holanda. Depois de resistir durante anos, está ensaiando um mergulho na modernidade e vai, finalmente, aceitar um notebook de presente dos filhos.
Seu herói é Jesus Cristo, espelha-se nele para dar um sentido à sua vida, que tem sido de serviço ao próximo. Gostaria de ser como o Nazareno, que sendo golpeado em uma das faces, ofereceu a outra… Sabe que temos todos uma fagulha de Deus e outra do Diabo e que são como dois cachorros famintos que moram dentro da gente, vai sobreviver aquele que for melhor alimentado. E por fim, ela espera que Alan Kardec tenha razão: que depois da morte, depois que alma deixe este triste envoltório, que voltemos a ser jovens, bonitos, inteligentes e corajosos.
_________________________________________________

Dona Cida gosta de andar à pé. Se a distância é curta, ela prefere deixar o carro na garagem e aproveitar para mexer o esqueleto. Acontece que as calçadas das ruas da nossa cidade mais parecem um queijo suíço, de tantos buracos que têm, e dona Cida acabou tropeçando num deles, na época em que fazíamos as nossas entrevistas. Na hora não doeu, mas quando sentou-se em casa, justamente na durante uma entrevista comigo, ela foi acometida por uma dor que a impediu de andar e acabou indo parar num hospital, para checar se não havia nada quebrado.
No dia seguinte, preocupado com a saúde da minha amiga, dei um telefonema.
__E então, Cida? Firme e forte? Tá tudo bem com você?
Ao que ela respondeu com um neologismo inventado por ela, indignada, como se eu tivesse mexido com sua honra.
__Mas é claro que sim, a Maria Aparecida é “inestingüível”!
Na hora que escutei isso, dei uma boa gargalhada, mas depois fiquei pensando… Dona Cida está conectada com uma força que, esta sim, é inestingüível. Por isso a aura de entusiasmo e determinação que a acompanham, por isso o fascínio que ela exerce em quem se aproxima dela. Porque dona Cida está sempre em conexão direta com sua alma e a coloca em tudo que faz.
Sou grato ao destino, à existência, a Deus, por termos cruzado nossos caminhos e nos tornado amigos, pois muitas portas se abriram e meu caminho se tornou mais iluminado. Espero que este texto tenha conseguido traduzir alguma coisa da beleza que foi este encontro de almas.
Curtir isso:
Curtir Carregando...