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ANTONIO E MARIA

dezembro 1, 2015

 

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Seu Antonio e dona Maria vivem numa casinha encantada, com fogão de lenha e telha van, protegida por flores plantadas e passarinhos cevados e muito bem escondida no Bairro do Sítio, em São Bento do Sapucaí. Ali o tempo parou faz já algum tempo. Pra vocês terem uma idéia, dona Maria ainda usa aquele pesado ferro de passar roupas no qual é preciso colocar brasas pra esquentar. Mas não é toda roupa que ela passa, só a que vão usar no domingo pra ir à missa na matriz de São Bento; calça e camisa para ele, saia e blusa para ela.

Cheguei hoje bem cedinho na casa deles, às 6h da manhã, a tempo de pegar seu Antonio tirando leite das 3 vaquinhas, que dão o suficiente para o gasto deles e dos familiares que moram na vizinhança.

__Quando sobra leite o que a senhora faz dona Maria?

__A gente distribui pros vizinhos, não presta vender a sobra.

Modernidades eles não querem nem que seja dado. Tem liquidificador e batedeira que ainda estão na caixa, sem uso. Os bolos dona Maria bate no braço mesmo. E atenção, esses bolos ela assa numa panela de ferro em cima do fogão de lenha, com brasa em cima e brasa em baixo. Num instantinho, enquanto eu conversava com eles, dona Maria assou um delicioso bolo de fubá com ovo caipira, nata de leite e banana, que ela serviu com café que ela mesma colheu e torrou, dos dois pés que ela tem no quintal.

Celular eles não querem. Dona Maria acha que aquilo estraga a vida da juventude, que fica ali beliscando aquele “apareinho” enquanto a vida passa… A saúde deles vai bem, obrigado. Com ajuda de alguns matos da horta e muito trabalho, que mesmo aposentados eles não pararam de trabalhar não!

Na sala há uma TV e eu não resisto à pergunta.

__Dona Maria, se a senhora gosta de tudo no sistema antigo, o que essa televisão está fazendo na sua sala?

__Ah, mas a gente usa só pra assistir a missa no fim do dia, depois que o serviço acabou a gente senta e acompanha a missa. Outra coisa que não seja reza não passa na minha televisão não…

Uma delícia visitar esse casal. Saí de lá alimentado de corpo e alma. O video abaixo tenta passar um pouco do clima de amor e harmonia que vivenciei com esses dois santinhos de carne e osso.

 

A FESTA DO SENHOR JOÃO

fevereiro 19, 2014

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Há 25 anos o Sr  João das Mercês Almeida realiza uma festa de Santos Reis no Bairro do Jaguari, São José dos Campos SP, como pagamento de uma promessa que fez se o filho se curasse de um cobreiro.

Na verdade a festa já existia antes disso, trazida de Minas Gerais por parentes da esposa do Sr João. A promessa foi de não deixar morrer a tradição da festa, em agradecimento à graça alcançada.

Tradicionalmente, as folias visitam as casas e os presépios no período entre o Natal e o dia 06 de janeiro, data em que os Reis Magos chegaram com seus presentes para o Menino Jesus. Mas os pedidos de visitas nestes dias são tantos, que esta festa acabou sendo “empurrada” para o mês de fevereiro, quando as folias já não são mais solicitadas.

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O Bairro do Jaguari fica na zona rural da cidade, a gente tem que sujar o pé se quiser chegar lá. O local da festa é uma fazenda de gado leiteiro, com construções simples de telha vã. O prédio mais novo e bem cuidado da propriedade é uma capela erigida em homenagem a Nossa Senhora Aparecida.

Até onde a vista alcança só se vê pasto e uma que outra árvore que a foice do roçador ou esqueceu de cortar ou resolveu deixar para dar sombra à criação.

Em frente à sede construiu-se um barracão com estrutura de bambú e lonas plásticas amarelas e azuis, tipo encerado de cobrir carga de caminhão. É neste barracão que o diácono vai rezar a missa que antecede a visita da folia de reis.

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Fui convidado para esta festa por um dos foliões, o Orlando, que trabalha na limpeza de um grande rede de supermercados e participa de folias de reis desde sua infância em Areias SP, onde nasceu, há 57 anos. Orlando sabe que eu gosto de registrar este tipo manifestação e está sempre me convidando. Como eu tinha este sábado livre, resolvi ir com minha esposa, que adora estas festas populares.

Chegamos um pouco antes da hora marcada para o inicio da celebração, com o intuito de entrevistar o festeiro e o pessoal envolvido na produção da festa. Estacionamos o carro no pasto recém roçado. A primeira coisa que notei foi um carro de polícia com dois policiais mulheres, o que estranhei, por se tratar de uma festa particular. Orlando me explicou que hoje em dia não vale a pena arriscar, é melhor se prevenir…

Minha esposa logo entabulou conversa com as duas marungas da folia e lá fui eu entrevistar a turma. Uns mais tímidos, outros mais falantes, uns tristes porque as festas já não são como antigamente, outros orgulhosos com a continuidade da tradição, o que une todos ali é a devoção aos Santos Reis.  Todos que entrevistei tem uma história de cura atribuída “a Santo Reis“.

Quando me dei conta, a missa havia terminado e já se ouvia os instrumentos da folia. Saí da sede onde eu estava entrevistando as cozinheiras que preparavam a carne moída e a salsicha que seria servida mais tarde e fui fotografar os foliões.

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Como eu olhava pelo visor da câmera, não acreditei nos meus olhos quando vi uma mulher parecida com minha esposa segurando a bandeira da companhia. Tive que olhar duas vezes e me lembrar da roupa que ela vestia para me certificar de que se tratava dela e não de uma sósia. Toda sorridente e bailando ao som da música, ela não cabia em si de contentamento. Perdi algumas fotos por conta das lágrimas que me turvaram a vista…

Para mim é impossível participar destas festas sem se envolver. Há alguns anos, quando comecei meu trabalho de pesquisador, achei que seria apenas um fotógrafo colhendo imagens. Mas como bem observou minha esposa, eu não sou um fotógrafo, eu sou um caçador da beleza, daquela beleza que emana da alma do devoto em seu momento mais sublime. Impossível não ser carregado pela força da fé nesses momentos, impossível não se lembrar de onde viemos e para onde vamos.

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A Bicicleta e a Inocencia

junho 29, 2012

Eu não sei bem como foi que aconteceu, mas o fato é que a bicicleta já não é mais o meu meio de transporte preferido. A velocidade se impôs ao bom senso. Em outras palavras, eu escolhi fazer mais coisas em menos tempo, o que, de bicicleta, seria humanamente impossível.

Eu poderia culpar os automóveis e o risco de ser atropelado pelo fato de ter abandonado a bicicleta. Ou então a prefeitura, que privilegia o automóvel e não constrói ciclovias e ainda por cima espalhou placas proibindo bicicletas em alguns dos principais corredores de tráfego. Mas não, fui eu mesmo quem escolheu mudar a velocidade do tempo e agora fico correndo atrás das horas, que me parecem cada vez mais curtas…

Ultimamente, a bicicleta, que já foi minha companheira inseparável nos deslocamentos urbanos, só tem me servido para um passeio eventual, quando consigo cair fora da camisa de força das metas e objetivos e deixo que o presente se imponha. Para estas escapadas, aproveito as horas mais calmas, quando todos estão dormindo ou assistindo uma final de campeonato, como na quarta-feira passada, durante o jogo do Corinthians e Boca Juniors. Sem carros trafegando, foi possível relaxar e me deixar levar pelo movimento repetido das pedaladas, como se elas fossem um mantra silencioso. Me percebi voltando no tempo, quando a cidade não era tão barulhenta e violenta e eu era o dono inquestionável do meu tempo. Porque, hoje, quem é que pode dizer que é dono do seu tempo?

A cortar o silêncio, de vez em quando algum rojão estourava – seria gol dos brasileiros ou dos argentinos? E eu lá me interesso por isso? Os fogos me lembram mais as festas juninas do que futebol ou qualquer outra coisa. E foi para uma dessas festas que minha nostalgia me transportou, trinta anos atrás, quando eu ainda namorava com aquela que seria minha primeira esposa.

Minha namorada era oriental, tinha o biotipo oriental mas eu a considerava muito mais brasileira que eu. Seu nome e compleição sugeriam uma origem chinesa, mas na verdade, em suas veias corria o sangue do povo do Império do Sol Nascente.

Liang era falante e extrovertida e suas roupas sempre tinham alguma coisa estrategicamente colocada, com o intuito evidente de pescar a atenção de olhos distraídos. O que me fascinava nela era uma mistura de docilidade e rebeldia, combinadas em doses que a tornavam irresistível, pelo menos para mim.

Pois bem, fazia muito frio naquela noite de junho, a festa de São João no CTA (área militar em que eu morava com minha familia) já ia terminando, a fogueira só nas brasas e nós tínhamos que acordar cedo no outro dia. Eu para trabalhar e ela para o cursinho pré-vestibular. Era começo de namoro e a gente estava com muita energia sobrando para simplesmente voltar para casa e dormir. Uma troca de olhares foi o suficiente para combinarmos que naquela noite iríamos, como em tantas outras, dormir no Hotel Castilho, uma espelunca localizada no centro da cidade, que nem banheiro nos quartos tinha…

Naquele tempo, eu não tinha carro ainda, nosso meio de transporte era a bicicleta e para ela nos dirigimos, a fim de pedalar os 5 km até o centro da cidade. Ao chegar na bicicleta, uma Caloi Barra Forte aro 24 vermelha, percebi que havia um grande volume amarrado no bagageiro. Olhei para Liang, ela me devolveu um sorriso maroto e eu entendi que aquele era seu presente de aniversário para mim. Desembrulhei o pacote de papel kraft e descobri um edredon com grandes quadrados vermelhos e amarelos, confeccionado por suas habilidosas mãos. Iríamos estreá-lo naquela noite mesmo!

Montamos na bicicleta, eu pedalando e ela na garupa, segurando com uma mão a minha cintura e com a outra o edredon, que tinha quase o mesmo tamanho que ela. Lá fomos nós, alegres de despreocupados, conversando pela madrugada fria e vazia de São José dos Campos do começo dos anos 1980. Não pensávamos, nem no que iam pensar daquela exótica dupla, nem em um possível assalto, isso era coisa de noticiário, não poderia acontecer nunca com a gente. Apenas nos deixávamos guiar pelos impulsos do corpo e do coração.

Ao chegarmos à Praça Afonso Pena, acorrentei a bicicleta em um poste em frente ao hotel, como sempre fiz todas as outras vezes. Pagamos adiantado, como era praxe neste tipo de estabelecimento e fomos logo para o quarto, pois não tínhamos muito tempo para curtirmos nossa liberdade antes do sol apontar no horizonte. Dormir, mesmo, era a última coisa que fazíamos, talvez durante uma ou duas horas. Naquela idade, dormir não era importante, o que contava era viver intensamente, de acordo com o que os instintos e a fantasia pedissem, ou melhor, exigissem!

Lá pelas 6h da manhã, a nosso pedido, o dono do hotel bateu na porta para nos acordar. Nos lavamos rapidamente na pia do quarto, com ajuda de uma toalha e fomos depois para a cozinha, tomar um café da manhã bem do ordinário; café com leite ralo, pão francês borrachento e margarina Saúde. Ruim que fosse, a gente comia com apetite, a fome aumentada pelas horas sem dormir.

A gente estava com pressa, eu ainda tinha que levar Liang para casa dela, mas ainda deu tempo de ler com o canto dos olhos a manchete do jornal O Vale Paraibano, nas mãos de um senhor sentado no saguão do hotel. Ela dizia: “Polícia às voltas com quadrilha de ladrões de bicicleta”. Claro que eu gelei e pensei no pior, mas relaxei quando saímos do hotel e vi que minha bike ainda estava amarrada ao poste. Mas à medida que nos aproximávamos dela, uma sensação de irrealidade foi me tomando. O guidon estava lá amarrado mas eu não conseguia ver o resto da bike! Cheguei a dar duas voltas no poste, em busca da parte faltante do meu veículo! Foi um choque! Era a primeira vez que a vida me levava algo de valor. Cheguei a abrir o cadeado e ia pegar o guidon que fora serrado do corpo da bike, mas me dei conta que seria inútil, um peso morto que eu ia carregar.

Voltamos de ônibus, cada um para sua casa. Eu me sentia como um general derrotado, sentado no ponto de ônibus, segurando aquele edredon colorido. Não conseguia ter raiva de quem me roubou, o sentimento era de frustração ao me deparar com a inexorabilidade da perda. Este episódio marcou o começo do fim da minha inocencia.

Depois desse revés, passei bem uns 20 anos sem bicicleta, acabei me mudando pra roça e quem me levava pra cima e pra baixo era um fusquinha velho. Foi só quando voltei para a cidade que arrumei uma outra bike e nunca mais tive coragem de amarra-la em um poste na rua, deixo sempre em estacionamento de carros ou dentro de alguma casa.

Santo Antonio

junho 17, 2012

O pessoal estava rezando o terço em frente à casa do festeiro, eram quase umas 50 pessoas, a maioria crianças e senhoras. As crianças eram divididas em meninas, que se fantasiaram de anjinhos e os meninos, todos vestidos de freis franciscanos. De homens adultos, havia dois rapazes para carregar o andor e mais um ou outro senhor de cabelos brancos. Essa pequena multidão ocupava metade da faixa de rolamento, todos convergindo os olhares para o andor de Santo Antonio. Os carros que vinham daquele lado da rua tinham que desviar e trafegar um trechinho na contra mão.

O terço ia lá pelo seu penúltimo mistério, quando um carro estacionado a 30 metros dali abriu o capo traseiro e  inundou a rua com uma música techno, num volume bem mais alto que um ouvido normal pode suportar. Resultado, ninguém mais conseguia escutar dona Vitória, a puxadora do terço. Os devotos de Santo Antonio se entreolharam, alguém tinha que tomar uma providência, não ia dar pra continuar a reza com aquele ensurdecedor bate-estaca eletrônico… Um senhor crente muito bem vestido, devidamente equipado com sua bíblia, passou exatamente nesta hora e não disfarçou um sorriso de escárnio, pelo visível mal estar instalado entre os adoradores de imagens.

Depois de um minuto de desconforto, seu Dorival, marido de dona Vitória, tomou a iniciativa e foi pedir ao jovem um pouco de respeito pelo santo. O rapaz não desligou o som, apenas baixou o capo e saiu cantando pneus. Pude ouvir de uma beata que falou baixinho:

__Este mundo está mesmo perdido… Rezar que é bom ele não quer…

O último mistério foi rezado durante a procissão, que percorreu o quase quilômetro entre a casa do festeiro e a pracinha do bairro, que era onde as barraquinhas da quermesse e o palco já estavam montados. Rojões estouraram e vivas foram dados a Santo Antônio quando ele adentrou a área cercada de cavaletes, colocados pela prefeitura para isolar a área. Rezou-se então um novo terço, dessa vez um terço luminoso, durante o qual são acesas velas, que os devotos seguram durante toda a reza. As crianças, os anjinhos e os capuchinhos já estão impacientes, não é de sua natureza ficarem quietas durante tanto tempo. Os pais pedem a eles, inutilmente, que se compenetrem e fiquem em oração.

Ao fim do terço, anuncia-se a distribuição de pães bentos. De cima do palco, gentilmente montado pelo candidato a vereador, dona Vitória e seu Dorival distribuem algumas centenas de francesinhos bentos, acondicionados em caixas de papelão, oferta da padaria do portuga.

Novamente se ouve os fogos, agora anunciando o mastro que será erguido, com a bandeira de Santo Antonio. Os mesmos dois jovens que carregaram o andor, agora pregam a bandeira do santo na ponta do mastro de metal e plantam o axis mundi no centro da praça. Em outros anos o mastro já foi de madeira devidamente escolhida, cortada segundo um criterioso ritual pelo padrinho do corte e ornamentado e pintado pelo capitão do mastro. Optou-se pelo metal depois que os vândalos passaram a destruir os de madeira. Só não conseguiram resolver o problema das moças que raspavam um pedaço da madeira do mastro, para fazer o chá milagroso, que teria o poder de trazer aos pés delas um noivo, já no ano seguinte.

Rezas terminadas, pães distribuídos, mastro erguido, começa a parte dita profana. O povo forma imensa filas para comprar ficha e consumir os comes e bebes; quentões, vinhos quentes, bolinhos caipiras e doces diversos. E se divertir na barraca de pescaria, no castelo de plástico inflável, com o bingo, com o correio elegante e finalmente, lá mais para o fim da festa, com a quadrilha improvisada. Alguns pés-de-valsas mais afoitos não se contiveram e já bailaram ao som de pagodes, sambas e sertanejos que rolaram durante toda a festa. Meia noite, pontualmente, encerra-se a festa, foi o combinado com a prefeitura, um acordo conseguido a duras penas, pois muitos vizinhos reclamaram do barulho depois das 22h e quiseram boicotar o evento.

Quando a festa terminou e começaram a desmontar as barracas, dona Vitória se deu por satisfeita, tudo deu certo e não houve nenhum contratempo. Mesmo que o padre tenha se recusado a rezar a missa na praça, como nos anos anteriores. Ele havia proposto que a festa fosse transferida para o pátio da igreja, para congregar os fiéis mais próximos do templo cristão, o que foi veementemente recusado pelos organizadores. Levar a festa para a igreja iria esvaziar o evento! Afinal, o mutirão para a realização desta tradição conta com a ajuda de crentes, umbandistas, espíritas, budistas e até ateus! Se fosse junto à igreja, que por sinal fica a dois quilômetros da praça, muitos desses ajudantes não iriam querer participar.

Ela pensou com seus botões: “Bem que o padre Vicente poderia ter sido mais flexível”…

Quinze de Novembro

novembro 16, 2011

Eu estava me sentindo um peixe fora d’água em meio aqueles pais de adolescentes aguardando suas crias, à saída do exame vestibular da Unicamp. Perdido no mar de carros estacionados caoticamente em frente à universidade, em pleno feriadão de 15 de novembro, lá estava eu, sem nada pra fazer dentro do veículo, impaciente, esperando por meu enteado. Ele estava demorando demais pra apontar no portão, que não parava de vomitar adolescentes, todos muito iguais entre si e recitando a mesma ladainha: “O que você respondeu na questão 27? A 42 só podia ser letra C, era muito fácil! Quando sai o gabarito?”

Tenho alergia ao sistema de ensino e todos os seus sintomas. Eu só estava ali porque a mãe do meu enteado estava acamada, teve uma súbita dor nas costas e me pediu para levar e buscar o filho. A mim, o prédio da universidade à minha frente se assemelhava a uma grande fábrica de enformar seres humanos, definitivamente, eu me sentia um estranho naquele ambiente. Mesmo após 4 anos vivendo na cidade, algumas coisas ainda me causam muita estranheza. O ritual dos pais levando os filhos para o exame vestibular me incomodava muito naquele momento.

O tempo estava encoberto, céu cinza escuro, e a chuva se anunciava. O vento quente trouxe um cheiro conhecido para dentro do carro, um cheiro acre que eu não identifiquei imediatamente, mas que me deu uma sensação de conforto e me encheu de nostalgia. Junto com o cheiro chegaram imagens, de uma floresta com uma cabana e um pasto com vacas deitadas à sombra. Quando vi as vacas o cheiro fez sentido: era da bosta delas o odor que inundava o ar.

Há exatos onze anos, também num feriadão de 15 de novembro, eu estava naquele pasto cuja imagem, agora, se fazia muito nítida na minha imaginação. Como uma formiga obreira, eu apanhava telhas em grupos de 6, atravessava o riacho e as depositava no local onde seria construida minha segunda cabana. Lembro que naquela época estava estudando alemão, de modo que a cada viagem eu associava um número e ia contando enquanto carregava as telhas: eins, zwei, drei, vier… até chegar naquele número. Pelos meus cálculos iria demorar uma semana para transportar a pilha toda, era a minha meditação, eu repetia os números em voz alta, como se fosse um mantra. Consegui aprender a contar atémil em alemão.

Numa das idas de vindas, me aparece na trilha um grupo de turistas. Volta e meia eles apareciam lá em casa, queriam ver o ermitão, comer “natureba”, tirar um tarot, receber uma massagem ou simplesmente passar umas horas em meio à natureza. Ficavam umas horas e iam embora, de volta para suas vidas urbanas.

Cumprimentei o casal meia idade, um adolescente e um garoto, este último era o guia do passeio. Eu não sou de parar o que estou fazendo para fazer sala, costumava e costumo, ainda, deixar as pessoas bem à vontade, para que se conectem com o que bem quiserem. De modo que continuei minha carregação de telhas até que meu corpo estivesse bem quente para o banho frio no riacho. Tomado o banho, dirigi-me à cabana, nu como Deus me fez, e adentrei a casa. O pessoal que mandava turistas para mim já sabia, eu não era uma pessoa comum. Quem chegava em casa já estava avisado que meu sitio não era nenhuma Disneylandia, se chegaram até mim é porque buscavam o anticonvencional.

Enquanto perguntava do interesse de cada um, o que queriam naquele passeio, acendi o fogo e comecei a preparar o almoço para todo mundo. O mais falante do grupo era o homem, um engenheiro de sistemas que desandou a falar e não deu espaço para mais ninguém. Veio com uma conversa de nova ordem mundial, que o sistema financeiro ia entrar em colapso, que ele elaborou um sistema revolucionário que ia substituir o dinheiro e que ele só apresentaria ao mundo no momento adequado, quando a humanidade estivesse preparada. Isso tudo saído da boca de um sujeito super careta, certinho até a raiz do cabelo. Ele tinha vindo me conhecer porque disseram para ele que eu vivia praticamente sem dinheiro, o que, para infelicidade dele, eu não pude confirmar.

Quando o homem deu uma brecha, perguntei à mulher, que estava encantada com o meu desempenho no fogão de lenha, o que ela tinha ido buscar lá na montanha. Ela me pareceu muito tímida, era médica, apenas amiga do engenheiro e queria aprender mais sobre o uso de plantas medicinais. O rapaz da agencia tinha dito que eu era um profundo conhecedor de ervas e ela ficou interessada em me conhecer. Prometi que depois do almoço faríamos um passeio educativo pelas redondezas da casa. Ela não abriu mais a boca, nem ela nem o filho do engenheiro, um rapaz soturno demais pro meu gosto.

Depois do almoço, um banquetezinho com carne de soja ao molho de caruru, omelete de ovos de pata, salada de beldroega com pepino e nabo, e um suco de lima da pérsia para ajudar a descer tudo isso, sentamos na sala e o engenheiro deu indícios de que iria continuar o discurso sobre a teoria do colapso do sistema financeiro. Eu não ia aguentar o segundo round daquela lenga-lenga, propus então uma brincadeira para descontrair, pra fazer aquele povo sair da cabeça e ir pro corpo.

Era uma brincadeira simples, que aprendi com uma amiga muito louca, e que sempre funcionava quando o povo era muito mental. A gente batizou a coisa de Só Para Loucos, inspirado no Lobo da Estepe, do Hermann Hesse. Dentro de um grande saco plástico, desses que servem para embalar colchão, eu tinha uma coleção completa de fantasias de todo tipo, trajes de homem e de mulher, desde pirata até bruxa. Botei tudo em cima do tapete, pedi que cada um escolhesse uma roupa e atuasse o que estivesse sentindo naquele momento. Pra facilitar a atuação e animar a brincadeira, pedi a um amigo que acabara de chegar, que tocasse um violão, o que viesse à cabeça dele. Quando não tinha quem tocasse o violão eu botava uma fita cassete no aparelhinho à pilha, um Manu Chao ou um Deep Forest eram perfeitos. De um jeito ou de outro, todo mundo participava e dessa vez não foi diferente. O povo todo aderiu.

O engenheiro pegou uma roupa de cigana e soltou a franga. O rapaz jogou um lençol preto nas costas e assumiu o lado escuro, fazendo caretas de filme de terror de terceira. O guia botou um chapéu de pirata, montou numa vassoura e saiu gritando ordens aos marujos. A mulher, ainda um pouco tímida, não vestiu nenhuma fantasia, mas acabou entrando na dança caótica que tomou conta da cabana. Eu me vesti de Adão, com uma folha de bananeira ao invés de folha de parreira. O negócio só foi esquentando, as fantasias sendo trocadas, muita improvisação, concurso da fantasia mais ridícula, tudo-que-seu-mestre-mandar, o pessoal gostou tanto que esqueceu da hora e íamos entrar noite adentro se o guia não interrompesse a brincadeira. O caminho de volta era longo, não dava pra arriscar andar na trilha no escuro.

No fim da história eu nem tinha mostrado as plantas para a médica, mas pela cara dela, na hora em que nos despedimos, o passeio tinha valido a pena. Nos demos um abraço gostoso e nessa hora eu vi nela uma pessoa especial, muito diferente da primeira impressão que tive. Disse ela que apesar de ter ficado um pouco assustada, me achado muito louco e ter vivido coisas muito diferentes do que estava acostumada, que um dia iria voltar, mas nunca voltou. No entanto, fez melhor do que isso. Seis anos depois, quando eu vendi o sítio em que nos conhecemos, ela ficou sabendo da venda meio que por acaso. Por iniciativa dela, nos encontramos uma vez, depois outra, e por fim entramos num acordo tão bom, mas tão bom, que eu acabei casando com ela. Há 4 anos ela é minha esposa. A gente tem se dado muito bem, apesar de eu estar a cada dia mais urbano e conectado, e o sonho de consumo dela ser um sitio nas montanhas… Quanto às plantas medicinais, ela não precisou aprender, eu mantenho uma horta em frente de casa; lá tem hortelã, boldo, carqueja, picão, mentruz, caruru, beldroega, estomalina, erva-cidreira, alfavaca, manjericão, bálsamo, babosa e mais algumas outras que eu devo estar esquecendo…

Sheela na Gig

outubro 15, 2011

Nós dois caminhavamos por uma rua deserta, já passava das duas da manhã e caia uma garoa fina e insistente. A gente tinha saído do show da Lady Gaga e meus ouvidos ainda estavam zumbindo. Íamos em silencio, o que se ouvia na rua deserta era o barulho dos nossos passos e o canto fora de hora de uma sabiá atordoada pelas luzes da cidade.

Minha amiga quebrou o silencio e começou a contar um sonho que teve na noite anterior. No sonho, eu era um guia de passeios em uma região de crocodilos e levava pessoas para brincar com esses animais em águas cristalinas e profundas. Colocavamos fios em volta do pescoço dos bichos, eles ficavam furiosos e eu ensinava os turistas como fugir para um lugar seguro, longe das bocas famintas dos répteis. Segundo ela, minha presença era forte no sonho e por isso ela quis que eu ajudasse a interpretar.

Sou um péssimo intérprete de sonhos, mas não falei isso pra ela. Nós estávamos muito juntos e seu corpo gordo colado ao meu me ajudava a proteger do frio mas ao mesmo tempo era incomodo, como se ela estivesse invadindo minha zona de segurança. Eu havia conhecido Leila numa sala de bate papo cabeça, num grupo que as pessoas discutiam Jung e suas teorias. Leila se destacou dos demais, ela tinha algo de familiar, parecia que eu já a conhecia há tempos. Passamos a fazer programas juntos mas entre nós rolava só uma amizade colorida, nada mais sério.

Ela se virou para mim esperando a resposta. Eu fechei os olhos, buscando imagens que me dissessem alguma coisa sobre o sonho.

Lembrei da minha mãe deitada ao meu lado, me aconchegando depois de ter me acordado de um pesadelo em que eu estava sendo comido por crocodilos. Eu devia ter uns 5 anos quando isso aconteceu. Minha mãe me consolava, passava a mão na minha cabeça dizendo que enquanto ela estivesse comigo nenhum mal poderia me atingir nesse mundo.

Automaticamente eu me afastei de Leila, que me perguntou se eu estava bem. Fiz um movimento afirmativo com a cabeça. Continuamos caminhando separados agora.

A voz da minha mãe se misturou à da Lady Gaga, que ainda ecoava na minha cabeça, e me veio a imagem de uma carona que eu peguei uma vez no sul França. Eu tinha acabado de sair de uma relação conflituosa, deixei a garota numa comunidade e botei o pé na estrada em direção à Grécia, fugindo do inverno europeu.

Eu devia ter uns 30 anos na época. Uma mulher bem mais velha que eu, me pegou na estrada e se propos me levar até o sul do país, onde eu devia pegar o trem para a Itália. No rádio do carro tocava Nina Hagen e conversávamos sobre feminismo. Ao anoitecer ela perguntou onde eu ia dormir, percebi que era um convite claro para que eu dormisse com ela. Agradeci e recusei, pois eu ainda estava no clima de uma história em quadrinhos que eu estava lendo para aprender francês. Eu tinha lido La Veuve Noire (A Viuva Negra), em que a mulher devorava os machos depois do coito. Pedi pra ela me deixar ali mesmo na beira da estrada, onde acabei pegando um ônibus para o meu destino.

Abri os olhos e lá estava Leila ainda me encarando, esperando que eu dissesse alguma coisa.

__Vagina dentata, você sabe o que é, não sabe?

__Sei, você acha que eu quero te comer?

__Pode ser, foi o que eu consegui perceber do sonho.

__Pra onde você quer ir agora?

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“Sheela Na Gig” é uma deusa da mitologia celtica, relacionada às sereias, que encanta e seduz os homens. Sua “vagina dentata” representaria um aviso contra os perigos associados à luxúria dos homens.

Casamentos

setembro 25, 2011

Domingão de sol, o casal sentado no jardim da frente da casa, curtindo o merecido descanso e tomando sua cervejinha gelada. A fome apertou e Ana Helena perguntou a Mário se ele gostaria de acompanha-la ao supermercado, comprar alguma coisa pronta para o almoço. Pelo tempo que ele demorou para responder ela deduziu que não, que ele não estava nem um pouco a fim de ir. A resposta que ele acabou dando, depois de refletir longos segundos, encontrou Ana Helena já abrindo a porta do carro:

__Você vai demorar muito no supermercado, Ana?

Ela devolveu um olhar atravessado e retrucou:

__Você não quer ir, eu sei, fica aí que é já que eu volto logo com a comida.

Mário ameaçou abrir a boca para responder, mas desistiu. Imaginou o calvário que se seguiria se ele se atrevesse a justificar sua não ida ao supermercado e optou pela manutenção da paz que o teor alcoólico da cerveja lhe proporcionava naquele momento. Apenas observou a esposa dar ré no carro e fincar o pé no acelerador. Por que ela fazia isso? -pensou ele. Incontáveis vezes ele já havia advertido a mulher que não se corre num lugar onde as crianças brincam nas ruas! Este simples pensamento foi suficiente para acabar com sua tranqüilidade naquele momento e ele praguejou em voz baixa…

__Mas que saco! Por que ela não me escuta? Parece que eu falo com as paredes! Como é que eu faço essa mulher entender que ela não vive sozinha no mundo, que ela não pode ir fazendo o que dá na telha? – Um arroto ácido forçou passagem pelo esôfago e aflorou na garganta. Pronto, o sábado estava definitivamente contaminado pelo azedume.

Levantou-se, foi até a geladeira, abriu a porta e percorreu com o olhar todas as prateleiras, em busca de alguma coisa para disfarçar o gosto ruim que lhe subia das entranhas. Apanhou a sobra do estrogonofe do dia anterior, a panela ainda estava pela metade. Cheirou, ia comer frio mesmo, mas parou a colher a meio caminho da boca.

__Se eu comer agora vou perder a fome e quando ela voltar vai dizer que eu não esperei pra almoçar com ela, já sei… – e colocou tudo de volta na geladeira. Encheu meio copo com água, misturou um pouco de bicarbonato e tomou de um gole só. 

Voltou ao jardim e deitou-se na espreguiçadeira. A azia cedeu, mas os pensamentos voltaram a atormentar, como moscas em cima de carne podre.

__Será que eu não deveria ter ido com ela? Mulher gosta de desfilar na companhia do marido, mostrar pra todo mundo que ela não está sozinha. Que saco, eu preciso ter mais iniciativa! Da próxima vez que ela convidar eu aceito na lata! Vou fazer melhor ainda, na próxima oportunidade eu mesmo convido ela pra sairmos!

Mas Mário não gostava de sair. Achava caro e desgastante comer fora; nunca se come tão bem como na paz e sossego do lar, dizia. Por ele, preparavam uma boa salada e esquentavam o estrogonofe e o arroz que sobraram do dia anterior.

Sentia-se paralisado. Queria satisfazer a esposa, mas ao mesmo tempo não queria contrariar a si mesmo. Essa divisão o acompanhava há tempos. Já era o seu quarto casamento, todos os outros relacionamentos anteriores haviam terminado por questões pequenas, bobas mesmo, que iam se acumulando e viravam uma avalanche de acusações e brigas intermináveis. O que ele vivia agora era um deja vu, uma repetição amarga de um filme cujo roteiro ele conhecia muito bem. Dessa vez ele queria, ele precisava, ele tinha que fazer diferente. Mas não sabia como, não via saída, não vislumbrava nem ao menos uma luzinha, fraca que fosse, no fim do túnel.

Com a primeira esposa foi um fracasso total. Ela queria e fez de tudo para que ele participasse dos negócios da família, nos quais ela estava envolvida até o pescoço. Eles dariam tudo de mão beijada, era só ele dizer sim e entrar de cabeça na construtora, numa posição de liderança e com uma boa retirada mensal. Mas ele preferiu o conforto de um emprego na montadora, não queria cobranças nem responsabilidades. O casamento não durou um ano. Ele foi tachado de preguiçoso e sem ambição de subir na vida. Divorciaram-se, mas por iniciativa dela e ele cedeu por que não quis o confronto judicial com uma pessoa que ainda amava. Foi seu primeiro trauma, foi pego de surpresa, pois no altar ele tinha certeza de que aquela seria sua esposa até que a morte os separasse. Ainda hoje se questionava… teria acertado ao aceitar a separação, sem brigar pelo que achava ser o correto, o justo, o combinado diante do padre e do juiz?

Não ficou muito tempo sozinho, logo apareceu a segunda, mais dócil, quase submissa, bem diferente da primeira, que era autoritária até a medula. Ela não trabalhava fora, era uma autêntica Amélia, cuidava do lar como ela só. Com essa não se casou, nenhum dos dois sentiu necessidade de formalizar a relação. Viveram bem, ou pelo menos ele assim pensava, por 4 anos. Até que um dia, do nada, ela começou a reclamar do tédio que era viver com ele, que a monotonia estava sufocando o relacionamento. Discutiram muito, conversavam até altas horas e ele descobriu que o silencio dela encobria segredos terríveis, dores insuspeitas e expectativas totalmente descabidas. Como ultimo recurso tentaram uma terapia de casal, sem sucesso. Um dia, chegando do trabalho, encontrou um bilhete na porta da geladeira, lugar certo de ele ler, já que a primeira coisa que fazia ao adentrar o lar era abrir uma cerveja geladinha, pra em seguida ligar a TV e assistir o canal de esportes na sua confortável poltrona. O bilhete dizia:

“__Mário, eu parti para uma viagem sem volta e nem pense em me procurar. Não dá pra agüentar sua apatia diante dos desafios da vida, cara! Não foi esse o homem que eu conheci há 4 anos, você me prometeu outra vida! Essa que eu tenho levado com você só está me fazendo doente, enfurnada nessa maldita casa. Eu não mereço isso!!! Fiquei quieta todo esse tempo e a dor só fez crescer, me sinto muito solitária demais nesse lugar. Meu coração precisa de sangue novo! Fui!”

Ao terminar de ler o bilhete, Mário sentiu um misto de surpresa, alívio e culpa. Foi como se uma nuvem pesada e escura tivesse saído de cima da sua cabeça. Mas não pode evitar de recriminar-se, pelo fato de não ter sido capaz de perceber que o silêncio daquela mulher, que viveu a seu lado durante tanto tempo, escondesse tanta dor e sofrimento. Foi à polícia, fez um B.O., mas nunca conseguiu saber do paradeiro da mulher…

Passou meses remoendo as memórias, tentando juntar as peças de um quebra-cabeças imaginário, cuja imagem revelaria toda a beleza do casamento ideal que ele tanto buscava. Pulou refeições e começou a emagrecer. Ficou desleixado no trabalho e por isso foi dispensado no primeiro corte que a montadora fez. Agora, além de infeliz no amor, estava desempregado. Condição que o levou e frequentar grupos de auto-ajuda onde, por um capricho do destino, encontrou sua terceira esposa.

Dessa vez juntou-se a uma mulher dinâmica, empreendedora e bem sucedida, uma pessoa que levava a vida a viajar, não tinha morada própria, uma cigana que vivia dando palestras pelo Brasil afora. Foi amor à primeira vista. Ela convidou-o para assessora-la em suas viagens e ele viu nisso a saída para todos os seus problemas, os financeiros e os de relacionamento. Imagine, uma mulher resolvida como aquela, ele estava feito! No início foi aquela maravilha, ela elogiava o empenho do companheiro e o ego dele inflava de orgulho. Ele fazia tudo o que ela pedia, pelo prazer da novidade e pela paixão que sentia. Foi assim durante os primeiros 12 meses. Até que Mário começou a querer dar palpites aqui e ali. Para ele era óbvio que havia como melhorar o que já era bom, mas a palestrante não arredou um centímetro. Tinha que ser do jeito dela e pronto! Afinal, a profissional ali era ela, Mário não passava de um auxiliar! Resultado, acabaram se desentendendo e Mário viu que daquele mato não ia sair coelho nenhum. Sentindo-se inútil e desprezado ao lado daquela prepotente, acabou voltando para sua casa, que por sorte estava desalugada na época.

Mais uma vez achou que o responsável era ele, que podia ter sido diferente se ele fosse diferente. Precisava, agora, botar ordem em sua vida, encontrar um fio da meada que o ajudasse a desenrolar a barafunda que tinha conseguido fazer com seus sentimentos. Cadastrou-se num desses sites que juntam pessoas afins. Preencheu os dados com o maior cuidado possível, foi o mais honesto que pode ao dar as informações. Ofereceram-lhe Ana Helena, uma engenheira solteirona e que morava sozinha, como sendo a parceira ideal para ele. O primeiro encontro foi num restaurante chique, escolha dela. Na hora de pagar a conta ela logo percebeu o embaraço de Mário e disse que já estava acostumada com isso, a noite era por conta dela. Em seguida foram a um motel, onde confirmaram as afinidades. Daí a morarem juntos numa casa alugada, que não era nem dele nem dela, foi um pulo. Ana Helena inclusive arrumou um bom emprego para Mário, na mesma firma em que ela estava prestando serviço.

Naquele domingo de manhã, se eles tivessem olhado no calendário, ou se tivessem boa memória, saberiam que estavam juntos há dois anos. Mas os pensamentos de Mário estavam no supermercado, mais especificamente ele pensava no por que da esposa estar demorando mais de hora para voltar com o almoço. Sua cabeça inundou-se de pensamentos negativos.

__Decerto ela está me sacaneando e decidiu almoçar sozinha, só porque eu não quis ir com ela. Se ela tivesse esperado um pouco eu acho até que teria ido junto, mas ela saiu que nem um corisco antes de eu responder! Ela fez de propósito, só pode ser, ela conhece meu ponto fraco e tem prazer em me cutucar! Eu mereço isso, meu Deus? Eu mereço?

Resignado e morrendo de fome, decidiu ir à cozinha preparar seu almoço. Pegou tudo que era legume e verdura da geladeira e montou uma salada caprichada. Palmito, alface, tomate, beterraba, cenoura, nabo, gengibre, cogumelos, misturou tudo numa travessa grande e já ia começar a temperar quando ouve o barulho do carro na garagem. Uma bola cresceu na sua barriga, chegara o momento de enfrentar o touro à unha. Ele já temia pelo pior…

Ana Helena adentrou a cozinha com um pacote contendo um cheiroso frango assado com farofa e ao ver o marido temperando a salada exclamou animada:

__Meu amor, foi transmissão de pensamento! Eu ia pedir pra você ir preparando a salada mas acabou a bateria do celular. A gente tá mesmo conectado! E sabe que você tinha razão? Foi ótimo você não ter ido! Encontrei a Mariângela da academia, a gente ficou falando sobre o Pilates que ela começou a fazer e está adorando… eu nem vi o tempo passar. Se tivesse ido você ia sobrar, querido. Você vê como a gente dá certo até quando não dá?

Ela abriu um sorriso, abraçou-o por trás e lascou um beijo na boca do atônito Mário, que deixou-se levar pelo momento, esqueceu de tudo que havia passado pela sua cabeça naquela última hora e sentiu-se mais casado do que nunca.

O Canto da Sereia

setembro 5, 2011

Quando ela apareceu na minha vida, eu estava muito bem casado e tranquilamente instalado na pacata Monteiro Lobato, cidade que eu pensei que ia viver até o fim dos meus dias. Levava uma vida de aposentado e para passar o tempo tive a brilhante idéia de montar um pequeno brechó-sebo ao lado de casa, no qual eu podia passar horas a ler enquanto esperava os clientes. É verdade que o negócio não fazia lá muito sucesso entre os 3000 habitantes da cidade, mas era o suficiente para pagar em dia as contas da casa. Os poucos que se atreviam a cruzar a porta da lojinha eram, em sua maioria, mulheres muito simples e pobres da roça, vinham à procura de uma camisa social para o marido, um vestido de debutante para a filha ou uma revista com imagens coloridas para o trabalho de escola do filho. Homem era raridade ali dentro, o máximo que eles faziam era lançar olhares curiosos e desentendidos, quando passavam pela janela que dava para a rua. A porta da loja ficava sempre aberta, mas as pessoas costumavam se fazer anunciar antes de entrar, hábito da gente da roça…

De modo que estranhei a entrada abrupta e totalmente sem cerimônia, daquela mulher de passos decididos, que de caipira não tinha nada. As roupas não me diziam de onde ela vinha nem o que ela fazia. Seus olhos castanhos percorreram rapidamente os objetos em exposição, mas passaram batido por mim. Ou ela não me viu ou me ignorou. Minha paranóia com autoridade logo encaixou aquela mulher na categoria “fiscal de algum órgão do governo” e comecei a suar frio. O estabelecimento era totalmente irregular, minha esposa e eu simplesmente abríramos uma porta e puséramos à venda o que era demais em nossas vidas. Todos os nossos cacarecos inúteis, acumulados ao longo de nossas existências, estavam ali naquele recinto. No desespero, minha cabeça fui compondo rapidamente um discurso de desempregado, vítima da crise econômica, uma criança pequena para cuidar, etc, etc… Deixei sobre a cadeira um exemplar usado do Macunaíma, minha leitura naquele momento e dirigi-me à figura recém chegada.

__Bom dia, moça, posso ajuda-la?

Mais próximo da moça, reparei que seus cabelos estavam sem penteado, sua roupa com cara de nunca ter visto um ferro de passar e quando me encarou percebi claramente que aqueles olhos nunca poderiam ser os de uma fiscal. Ela seria talvez uma artista, uma cigana, ou quem sabe (?), uma hippy metida a chique. As peças que vestia eram finas, mas, definitivamente, não pareciam se entender muito bem umas com as outras…

__Ah, Chico Abelha? Sua esposa me disse que viesse aqui fazer uma demonstração do meu trabalho para você.

__Você é vendedora?

__Não, eu sou terapeuta.

Minha cabeça bagunçou, aquela mulher não correspondia em nada à imagem que eu tinha de uma terapeuta. Naquele momento eu fiquei realmente confuso, já estava achando que ela pertencia a alguma seita religiosa, as pessoas comuns não tinham o olhar tão intenso como o dela. Não saquei o porque de minha esposa ter mandado aquela mulher falar comigo… Minha cara de desentendido pedia uma explicação à recém chegada:

__Vejo que você está confuso. Eu sou nova na cidade e quero divulgar o meu trabalho, por isso ofereci uma sessão à sua esposa enquanto conversávamos no cabeleireiro. Mas ela me disse que você estava precisando mais do que ela…

Ah! Me fazendo de cobaia, pensei comigo, muito esperta a minha esposa! Ou será que ela achava, mesmo, que eu precisava de tratamento, mais do que ela? Normalmente eu teria declinado da oferta. Eu não conhecia aquela mulher, não sabia de onde ela vinha, desconhecia seu trabalho, mas mesmo assim, apesar de toda estranheza, não me senti desconfortável na presença dela. Minha pergunta seguinte foi quase um sim e ela pegou a dica…

__Mas, como é que é a sua terapia?

__É um trabalho que modifica a informação da suas células com cores e luzes, podemos fazer aqui mesmo, ali em cima daquela esteira.

__Aqui mesmo? Não é preciso um lugar especial, em silencio e um pouco de concentração, dá pra ser no meio dessa bagunça?

__Dá sim, é só fecharmos a janela e a porta.

Enquanto eu encostava a porta e corria o vidro da janela, ela estendia um pano preto sobre a esteira, sentou numa das extremidades e me indicou que eu sentasse na outra. Por cima do pano preto ela espalhou um baralho de cartas e me pediu que tirasse dez delas e que não as virasse para cima. Minha resistência já havia sido quebrada, mesmo achando estranho que um trabalho com cores começasse com um baralho, tirei as dez cartas como ela pediu. Formou uma cruz com as cartas e à medida que foi virando cada uma, desfiava comentários sobre minha vida passada, presente e futura. Ela não tinha papas na língua, falava com muita segurança, sem me consultar para confirmar se estava certa ou não.

Fiquei estupefato, em vinte minutos a mulher havia descrito a minha vida em detalhes, como se estivesse lendo das páginas de um livro. Eu já tinha feito análise antes, nenhum terapeuta jamais havia feito uma descrição tão acertada de como eu sou e a me dado a explicação do porque de eu ter passado pelo que passei. E não só isso. Ela me dizia que em breve eu mudaria de casa e iria morar na floresta, num lugar afastado de tudo e de todos e mais alguma coisa que ela preferia não falar naquela hora… Mas essa parte eu deletei, o futuro a Deus pertence, me contentei com a descrição os acertos sobre meu passado e presente.

Em seguida às cartas, ela pediu que eu me deitasse de barriga pra cima e tirasse a camisa. Riscou meu corpo com um lápis de pintar olhos e com uma lanterna que tinha cristais coloridos e intercambiáveis na ponteira, foi energizando os pontos que, segundo ela, eram os que mais precisavam de mudança de informação; sempre segundo o que haviam dito as cartas.

Devo ter relaxado profundamente, pois quando acordei com o barulho da porta abrindo, ela já não estava mais na loja. Era minha esposa que entrava e para minha surpresa, me chamou para uma conversa franca. Ela precisava de espaço, depois de dois anos juntos, já não estava mais agüentando, estava se sentindo sufocada, mas que eu pensasse bem, não precisava tomar nenhuma decisão apressada. Ela não foi explícita, mas a casa que morávamos era dela, o que deu a entender que quem deveria sair era eu. Discutimos muito, mas ela estava irredutível. Aquilo foi um soco no estômago, entendi como uma traição e a primeira coisa que me veio à cabeça foi me mudar para o sítio que eu tinha na Serra da Mantiqueira, não muito longe dali. Pensei até em morar numa barraca, já que no sítio não tinha casa, nem pra gente nem pra animal.

Muito chateado e meio perdido, passei a frequentar a praça da cidade à noite. Com o impacto do golpe, eu nem me lembrava mais da mulher que me tirou as cartas e botou as cores e nem a reconheci quando ela me chamou pelo nome e sentou-se a meu lado num banco da praça. Contei a ela minha história recente e um sorriso brotou dos seus lábios.

__Olha, eu também estou procurando um lugar para morar, que tal irmos morar nesse seu sítio? Eu posso ajudar você a construir.

Enquanto ela falava eu sentia que um peso enorme saia das minhas costas. O futuro se iluminou e no dia seguinte eu estava cortando árvores no sítio, já com o projeto da cabana na cabeça. Foi tudo muito rápido, conseguimos um pessoal da roça para ajudar a carregar a madeira, montar a cabana e cobrir de sapé. Em questão de um mes e pouco eu me mudava para a nova morada na companhia da Uiara, esse o nome da terapeuta. Segundo explicação dela mesma, seu nome significa “devoradora de homens” em língua indígena. No tempo que passei com ela na floresta, fiz questão de aprender a usar as cartas. Hoje tenho o meu baralho.

Presente de dia dos pais

julho 31, 2011

Eu já tinha prometido a mim mesmo não mais escrever sobre meu pai, falar do Alzheimer e do seu estado de saúde fragilizado, mas não consegui evitar. Me deu uma coceira enorme nos dedos quando vi aquele ser deitado e amarrado a uma cama de hospital, aquele ser que um dia foi meu pai. 

Numa quinta-feira, final de julho, ano 2011, meu pai teve alta da UTI na hora do almoço, mas só lá pelas 15 horas é que pude ve-lo, num apartamento a que ele tem direito pelo plano de saúde. Agitado, muito mais magro do que o habitual, a boca seca e aberta, com uma sonda entrando pelo nariz, ele nem de longe lembrava o homem que lá na minha infância me agarrou de jeito e me deu uma boa sova daquelas bem dadas, só por causa da bagunça que fiz com as ferramentas dele. Engenheiro que era, sempre gostou de ter às mãos as ferramentas para fazer pequenos consertos na casa. Artista que sou, nunca gostei de arrumar as coisas em seus devidos lugares. Vejo beleza no caos, enquanto ele sempre gostou da ordem e da arrumação. Isso sempre foi motivo de atrito entre nós. Quando ele voltava pra casa à noite, vindo do trabalho na fábrica, eu fingia que estava fazendo alguma coisa de útil, pra que ele não viesse me cobrar alguma lição de casa ou tentar me ensinar alguma palavra nova em ingles. Eu tinha verdadeiro horror de ter que imitar aquele queixo encolhido do sotaque britânico, que ele achava muito mais elegante e superior ao americano.

Olhei para suas mãos amarradas, inchadas e roxas pelo excesso de anticoagulante que ele toma há quarenta anos – não há uma maneira menos cruel de se manter um idoso com Alzheimer na cama, sem que ele se fira a si próprio? A indústria farmacêutica inventou fórmulas mágicas para prolongar a vida, mas a qualidade ainda deixa a desejar…

Qualidade sempre foi um ponto de honra para meu pai. Quando ele via meus cadernos da escola ficava possesso. Eu os enchia de rabiscos surrealistas, foi a maneira que encontrei de driblar o tédio que sentia dentro da sala de aula, principalmente nas disciplinas de exatas. Eu registrava as aulas de uma maneira caótica e artística, ele implicava com isso e me mostrava as anotações escolares dele. Uma escrita perfeita, impecável, com a letra parecendo impressa, de tão caprichada que era. Acabei assimilando a caligrafia dele por osmose, de tanto que ele insistia que a escrita precisa ser legível e sem rasuras. Errou? Rasga e começa tudo de novo em outra folha, nada de apagar com borracha – dizia ele! Claro que isso era no tempo em que ainda se escrevia a lápis… Já com os meus desenhos ele era bem mais tolerante, até elogiava meus aviões com cara de salchichas voadoras! Talvez imaginasse que assim incentivava um possível gosto do seu primogênito pela engenharia aeronáutica. Se assim pensava, o projeto abortou logo de cara, pois a bronca que levei por causa das ferramentas foi justamente porque eu estava construindo meu primeiro avião de madeira!

O apartamento no hospital até que é espaçoso, mas barulhento e muito frio, gelado mesmo, constrastando com a temperatura do inverno quente lá de fora. Procurei pelo controle do ar condicionado, tentei subir para os 23 graus mas não consegui. Achei um cobertor no armário e o estendi sobre o lençol fino que cobria meu pai, que sempre foi um cara muito friorento. De tão friorento, ele chegou até a inventar uma geringonça à qual chamou de esquenta-pé. A coisa era feita de uma lata de Nescau encapada com flanela, uma lampada de 15 W e dentro da lata um interruptor pra desligar quando esquentasse demais. Vendi muitos desses esquenta-pés na lojinha que minha mãe mantinha em casa, sempre abastecida com demais os produtos que ele fabricava na sua pequena indústria. No display da loja havia copos térmicos de plástico, jarras diversas, tampas para garrafas de refrigerante e cerveja, aquários com neve artificial, quebra-cabeças, abridores multiuso, brinquedos variados, uma infinidade de produtos de todas as cores, que enchiam meus olhos e meu imaginário infantil.

Eu gostava de ir à fabrica aos sábados. Pegávamos a kombi branca, saíamos da região da Avenida Paulista e em dois tempos chegávamos ao prédio feio, triste e sujo, localizado no bairro do Pari. Eu adorava ficar vendo entrar numa ponta da máquina o polietileno granulado, que era aquecido, derretido e prensado, para magicamente aparecer na outra ponta em forma de peças que mais tarde seriam coladas e virariam brinquedos e utilidades domésticas. Lembro até hoje do cheiro do tolueno, o solvente da cola, devo ter tido meus primeiros baratos ali naquelas mesas, ajudando na montagem desses objetos. A finalização dos brinquedos era a parte que mais me divertia, eu gostava de trabalhar no meio da mulherada arrebanhada ali mesmo na região. Não via o tempo passar em meio àquela salada de sotaques nordestinos e mediterrâneos, com uma conversa bem diferente da que eu ouvia em casa… Mas odiava quando meu pai me punha sentado na mesa do escritório, que para mim mais parecia a antesala do inferno, e se punha a demonstrar teoremas e me explicar o que eram senos, cosenos e tangentes. Verdade seja dita, aprendi alguma coisa durante essas lições. Por exemplo, entendi muito bem e me foi útil muitas vezes na vida prática, a noção de que o caminho via hipotenusa é sempre mais curto do que pelo lado dos dois catetos. Mas de resto, era terrivelmente desgastante ficar à mesa escutando a voz irritada do engenheiro, diante da incompetência do artista para entender o mundo do jeito quadrado que ele via…

O cobertor que estendi sobre o lençol não provocou nenhuma mudança no semblante do velho. Ele permaneceu indiferente, o olhar distante não manifestou nem gratidão, nem reconhecimento e nem alívio. Minha mãe disse que pacientes de Alzheimer não reclamam de dor, mas duvido que não sintam o desconforto. O ar condicionado continuava secando e esfriando o ar. Olhei com preocupação para os lábios do meu pai, que já estavam começando a descascar. Besuntei manteiga de cacau e umedeci sua língua com gaze embebida em água, imaginando que assim aliviaria um sofrimento e aflição que talvez fossem mais meus do que dele. Me dei conta da inversão de papéis, agora era ele a criança a precisar de cuidados. Lembrei dele fechando as janelas do meu quarto, acendendo a espiral de fumaça contra os mosquitos e aparecendo no meio das noites de inverno pra me botar mais um cobertor. Ele nunca me abraçou, nem me beijou. Fui eu quem quebrou esse gelo, bem mais tarde, depois que aprendi a tocar outras pessoas, ajudado por umas aulas de Biodanza que resolvi fazer, lá pelos meus 28 anos mais ou menos. Foi nessa época que ele mudou comigo, passou a me considerar, me percebeu como um igual, antes eu era o filho que não tinha dado certo… ou pelo menos assim eu achava.

Mas o nosso encontro mesmo, se deu quando meu pai se aposentou e passou a frequentar o sitio que eu morava. Ele tinha lá a sua casona no alto da montanha e e eu a minha casinha no fundo do vale. Sua diversão era passar o dia inspecionando as cercas, as valetas das estradas e as mudas de frutíferas que espalhou pela propriedade. Pegava uma enxada, um saquinho de NPK e outro de veneno contra saúva e rodava o sitio inteirinho, todo feliz com a descoberta das coisas simples da vida. Como ele ficava sozinho, passou preparar o seu almoço, mas deparou-se com um problema: não tinha a mínima noção de como se comportar diante de um fogão! Não é exagero, ele não sabia nem como fritar um ovo, sempre houve quem fizesse isso para ele! Resultado é que nas nossas conversas, volta e meia ele me perguntava como preparar um macarrão, uma couve, um ovo, uma batata, essas coisas básicas, mas que pra ele eram um bicho de 7 cabeças! Eu me divertia ensinando o velho, vendo aquele senhor setentão a anotar uma receita culinária como se fosse uma fórmula matemática! Detalhe, eu nunca comi da comida dele, muito espartana e sem imaginação pro meu gosto… Mas ele era feliz, chegou a me dizer que só depois de aposentado é que entendeu o por que de eu ter ido morar na roça e levar a vida tranqüila que eu levava. Considerei este o maior elogio que ele jamais me fez.

O frio não dava trégua, e eu recém saído de uma gripe, estava tremendo que nem vara verde naquele quarto. Fucei no armário e descobri um pijama de nylon azul escuro, que minha mãe havia trazido mas que ele acabou não usando. Não tive dúvidas, vesti aquela coisa de plástico mesmo, de contato desagradável com a pele. E imediatamente um cheiro conhecido me invadiu as narinas, despertando memórias há muito adormecidas. O cheiro era o mesmo que eu sentia quando ele me me apoiava os braços, ao cometer a temeridade de ensinar um garoto de 10 anos de idade a atirar com uma carabina Urko calibre 22. Verdade que meu pai tinha sido militar, tinha intimidade com armas, mas foi um risco muito grande. E o garoto, lógico que com o incentivo dado pelo pai, cometeu o crime de assassinar algumas dezenas de gatos que vinham fuçar na horta no quintal da família, na alameda Sarutayá 333, em São Paulo. Até hoje não sei como esse episódio passou em branco e nunca houve uma reclamação de nenhum dos vizinhos, dando falta de algum bichano estimado! Pura sorte, nem gosto de lembrar, mas parece que tenho que escrever, até como uma confissão de culpa de alguém que quer se redimir.

Nas nossas conversas falamos de muita coisa, mas nunca perguntei o que ele tinha na cabeça quando deixou uma arma de fogo nas mãos de um menor desacompanhado. Mas ele se abriu comigo, até muito mais do que eu imaginava quando me aproximei dele. Falamos de como ele escolheu minha mãe pelo tipo físico que, ao ser combinado com o dele, geraria uma prole idealmente perfeita, (eu lembro das risadas que dei quando ele me contou isso com a cara mais séria do mundo!) De como ele gostaria de ter brigado menos com os filhos e ter sido mais amigo do que carrasco. Falamos de como ele tinha dificuldade de se fazer entender pelas pessoas mais próximas e de que seu sonho seria passar seus últimos anos suando a camisa no sítio e não na cidade. Ele falava muito, gostava de falar, emendava uma história na outra, contava várias ao mesmo tempo e isso às vezes me entediava, até porque algumas eu já sabia de cor e salteado. Mas se fosse hoje, com a curiosidade e tempo de que disponho, teria deixado o velho falar, deixaria ele recontar em detalhes como foi sua infancia em Nova Europa, como eram aqueles tempos cheios de dificuldades mas repletos de aventuras. Deixaria ele contar, pela enésima vez, que era filho de imigrantes que aportaram no Brasil com as mãos abanando e que chegaram a roubar bananas, no Porto de Santos, para não morrerem de fome. E deixaria, mais uma vez, que ele falasse do orgulho que tinha dos pais, que com muito trabalho e dedicação, conseguiram dar curso superior aos 7 filhos que tiveram.

Alguém bate à porta e não espera permissão,  já vai entrando. É a enfermeira com a refeição da noite, a ser administrada através do catéter introduzido em sua narina, o jeito mais esquisito e antiprazer de se alimentar que eu já vi na vida!… Com paciencia de mãe ela montou o aparato, ligou o motorzinho, mas ele nao pegou de jeito nenhum, precisou de várias tentativas e algumas pancadas na carcaca antes de comecar a bombar o preparado de cor indefinida, à base de soja e frango; parecia até o Ford 29, das histórias da querida e idolatrada Nova Europa, cidade natal do meu pai, um amontoado de prédios, perdido na alta araraquerense, mas que na boca dele ganhava contornos de uma Terra do Nunca caipira. Ou teria sido a sua Pasárgada? Não sei, só sei que lá ele foi feliz, lá ele era cuidado e mimado por um bando de mulheres fantásticas, suas irmãs e sua querida mae, as fadas que faziam as vezes de embaixatrizes entre ele e o mundo real.

Tocou o telefone no quarto, era minha mãe que chamava, interrompendo a viagem que eu fazia com meu pai. Ela sempre foi assim, abrupta e decidida, um modelo robusto de mulher, que sempre soube o que quer. Escolhida a dedo pelo meu pai, à imagem e semelhança de sua mãe e irmãs. Meu pai é Taurino, minha mãe Escorpiana, Marte e Venus, juntaram-se a fome e a vontade de comer. Tenho certeza de que foi amor à primeira vista, um fogaréu forte o suficiente para produzir as brasas que ainda hoje aquecem a relação dos dois. Tenho certeza que jamais tiveram duvida, mesmo com todas as brigas que atravessaram, que as juras que trocaram no altar foram sinceras e para vida toda.

__Chico, eu já estou chegando pra ficar aí com seu pai. Você já pode ir andando, mas me faz um favor quando sair? Passa em casa e veja se eu fechei o portão eletrônico, saí tão depressa que não me lembro se acionei o controle.

Minha mãe sempre faz milhares de coisas ao mesmo tempo e vive pedindo ajuda pra conseguir cumprir todos seus intentos. Nas atuais circunstâncias eu não podia e nem devia negar isso a ela. Saí do hospital e fui à casa dela. O portão estava mesmo aberto e pedi ajuda do guarda, o Valdeci, que sabe como fecha-lo manualmente. Naturalmente, falamos do estado de saúde do meu pai e ele comentou como gostava de conversar com o dr Ruiz, sempre animado e espirituoso, principalmente com os não familiares. Contei em detalhes a condição do meu pai e o Valdeci fez um comentário no final:

__Puxa vida, seu pai um homem tão ativo, agora nessa situação. Como será isso pra ele?

__Não sei, Valdeci, só sei que eu não quero essa vida pra mim, não! Faço qualquer coisa mas não fico nessa situação de dependência dos outros de jeito nenhum. Que graça tem viver nesse estado?

O Valdeci me olhou bem nos olhos, deu uns 5 segundos antes de falar e soltou a bomba…

__Chico, olha só, eu conversava muito com o seu pai e há dez anos ele falou a mesma coisa que você tá falando pra mim agora.

__ …

O que você fica fazendo, sozinho, lá em cima daquela montanha?

junho 13, 2011

Na virada do século XXI, no tempo em que eu morava sozinho num sítio no meio da floresta, as pessoas tinham muita curiosidade sobre minha vida de ermitão. Uma das coisas que mais me perguntavam era: “O que você fica fazendo, sozinho, lá em cima daquela montanha?”. Na cabeça das pessoas, sítio e natureza estão associados a lazer, não imaginam que é preciso muito trabalho, trabalho de verdade, para manter limpa e produtiva uma área como aquela minha, do tamanho de um campo de futebol. A terra, que eu cultivava praticamente o ano todo, exigia capinas regulares, regas, podas e, claro, havia também que colher o fruto do plantio. Eu fazia tudo isso na base do machado, da foice e da enxada, nada de máquinas, nenhuma tecnologia moderna.

Feita a colheita, eu tinha que dar um fim ao produto; ou consumindo; ou conservando; ou vendendo. As bananas eu secava no forno à lenha (dava uma banana-passa deliciosa!), as laranjas eu transformava em geléia, as goiabas, abacaxis e abóboras viravam doce e as jabuticabas, um dos mais gostosos licores que eu conheço. Havia também a horta, cuja produção eu doava em sua maior parte. Além disso, eu ainda tinha que juntar lenha e rachar em pequenos pedaços, pra queimar no fogão, onde eu fazia minha comida e assava o pão. As louças e a minha roupa, quem lavava era eu também. A casa era varrida todo santo dia e uma vez por mes eu encerava e lustrava o chão de tábuas. O resto do tempo, este sim, era só meu. Essas horas eu usava para ler, tocar um violão ou ir à cidade comprar alguma coisa que estivesse faltando. Se aparecia alguém, alguma visita, eu dava um dedo de prosa e continuava a fazer meu trabalho, pois se eu não fizesse, quem é que ia fazer? E eu não tinha o mínimo pudor de convidar as visitas para se juntarem ao trabalho que eu fazia, seja carregando pedras ou troncos que eu não conseguia carregar sozinho, seja ajudando a arrancar mato na horta.

As visitas eram bem vindas, de modo geral, mas quando elas resolviam que iam pousar lá em casa, aí era complicado. Os hábitos do pessoal da cidade eram bem diferentes dos meus. Eles vinham para se divertir, queriam dormir tarde, se desestressar no silêncio acolhedor da roça, e nem se davam conta que a agitação deles acabava com o meu sossego. Logo percebi que se eu quisesse preservar minha tranqüilidade, teria que construir uma casa de hóspedes. Foi o que fiz.

Construir uma casa no meio da mata, por pequena que seja, é um trabalho hercúleo. Meu sítio não tinha nenhuma estrada de acesso nem contava com energia elétrica, eu nunca quis essas facilidades. Uma época o governo do Estado queria dar de graça, eu recusei, sabia que aquilo seria o começo do fim. Então, com o acesso difícil, tudo que chegava lá em cima, telhas, vidro temperado, lajotas para piso, pias, portas, pregos, arame, óleo queimado, etc… tinha que ser trazido no lombo do burro ou nas costas de gente. Madeira eu tinha muita, na mata, mas era pau roliço e se eu queria uma tábua ou viga, elas precisavam ser serradas, ou com o serrote ou com o traçador.

Nessas horas, quando o bicho pegava, quando não dava pra fazer sozinho, eu pedia ajuda pro pessoal da roça. Eles tinham os animais e as cangalhas com os balaios, e me colocavam lá em cima todo o material, num verdadeiro trabalho de formiguinha. Foi nessa época, quando eu estava ainda estava planejando construir a segunda casinha, que me apareceu um tal de João Serra, um solteirão que tinha ido se esconder lá perto de casa. Um dia cruzei com ele na trilha e começamos a assuntar. O João parecia um homem das cavernas, tinha aquela sujeira preta debaixo das unhas, todo peludo, barba e cabelos ruivos enormes e de sandálias havaianas quase na lona de tão finas que eram. O sotaque era o pior caipirês da região, a fala parecia um grunhido pra dentro. Conversa vai, conversa vem, eu descobri que ele era serrador e que podia me tirar uma tábuas com o traçador, o que vinha a calhar, pois eu tinha algumas araucárias deitadas no meio da mata. Só dependia da disponibilidade do primo dele, um outro Serra, porque o traçador se opera a dois, é como numa dança, coisa bonita de se ver.

Depois de uns dias o primo deu o sim e eu quis combinar o preço, essas coisas é melhor acertar antes pra não ter mal entendido. Fomos até as árvores caídas, o João mediu tudo com um daqueles metros de madeira da marca Bambú e me deu o valor. Achei barato e até comentei com ele.

__João, mas esse valor é pra serrar toda essa madeira em tábuas de 30? Tem certeza? É isso mesmo, não vai me querer mexer nesse preço depois?

__Não, sô Chico, vô mexe nu preço não. Eu to fazeno um preço bão mai to quereno uma coisinha do sinhô. Ouvi dizê que o sinhô tem um baraio de carta que ajuda a desencaiá home sortêro.

Não sei como a informação tinha chegado aos ouvidos do João, mas, na certa, o “baraio” que ele falava era o tarot, que eu andava tirando pros chegados, coisa sem compromisso e na base da amizade. Nunca pensei que um caipira como o João pudesse se interessar, muito menos pra arrumar casamento…! No entanto, curioso que eu sou, resolvi dizer que ia botar o “baraio” pra ele, eu não tinha nada a perder. Fomos pro jardim lá de casa, estendi uma toalha preta no gramado e pedi pra ele cortar o baralho. Ele me devolveu as cartas, e meio que pedindo, meio que cobrando me disse…

__Sô Chico, eu quero uma muié com saúdi, trabaiadêra i honesta. Ser for peituda i boa di anca mió.

__Pensamento positivo é sempre bom, João, saber o que gente quer ajuda muito, viu!

Pedi que ele se concentrasse no objetivo e tirasse tres cartas com a mão esquerda. Os olhos do caipira percorreram sem pressa o leque de cartas espalhadas e, muito sério ele tirou cada uma das cartas e me entregou nas mãos uma após a outra. A primeira que que saiu foi o Eremita, depois os Amantes e finalmente o Mundo. Normalmente aquela seria uma combinação favorável para o que ele queria, mas fiquei temeroso de dar falsas esperanças para o pobre homem. Respirei fundo, me conectei com a intuição e ela me disse: “Vai fundo, é isso mesmo que você está vendo, pode falar pra ele!”. E eu falei.

__João, não demora muito você vai arrumar uma mulher do jeito que você quer. Não precisa nem ir na cidade, é ela vai encontrar você aqui no mato. Fica na sua, não muda nada na sua vida, que as coisas estão boas pro seu lado.

Os olhinhos do João brilharam, ele não cabia em si de contentamento. Me agradeceu e foi embora com um sorriso de orelha a orelha. Nos próximos dias, ele mais o primo me serraram toda a madeira, eu paguei e não ouvi falar mais do João durante uns meses. Um dia, passeando pela cidade, encontrei ele abraçadinho com uma mulher muito bem apanhada, mas não fosse ele me chamar eu não o teria reconhecido. Os dois irradiavam felicidade e dessa vez João estava limpinho, barba feita e cabelo cortado, nos pés uma botina de couro, faiscando de tão engraxada!

__ ÔSeu Chico! O seu baraio não faiô, quero apresentá a Maria, minha esposa!

Confesso que fiquei emocionado, me senti meio que responsável pela alegria daqueles dois. Conversei um pouco com eles, perguntei se iam morar na roça ou na cidade, se tinham planos de botar filho no mundo, essas coisas que se pergunta pra gente recém-casada. Na hora de ir embora, a Maria me pergunta, toda tímida e com uma voz muito doce, se eu não podia ler as cartas para uma irmã dela que já estava prá lá dos 40 e que nem Santo Antônio tinha conseguido desencalhar. Não deu pra negar, não consegui, o que custava tirar um tarozinho para uma solteirona encalhada?

Alguns dias depois me aparece a irmã da Maria, a Cida. E depois dela, uma fila interminável de gente subia o morro e vinha bater lá em casa querendo saber coisas. Volta e meia eu estendia o paninho preto e tirava cartas pra gente querendo saber de paradeiro de filho, documento perdido, traição, morte, saúde, mas o campeão mesmo, a fama que ficou é que o “baraio” era casamenteiro e fazia milagres com gente encalhada! De modo que, dessa época em diante, somei mais essa tarefa aos meus afazeres diários no sítio. E mesmo assim, muita gente ainda me achava um bon vivant, vivendo uma vida de aposentado desocupado, lá em cima na montanha…