De onde viemos?

Telefone quando toca aqui em casa depois das 9h da noite, coisa boa não pode ser. Ontem tocou, mas eu nem escutei, estava assistindo o Rede Social no computador e tinha fones de ouvido bem pregados nas orelhas, pra me proteger do barulho da TV. Só fiquei sabendo da ligação quando vi que minha esposa se preparava para sair e com gestos me perguntou se eu queria ir junto com ela.

__Ir pra onde uma hora dessas, amor?

__Sua mãe ligou e disse que seu pai está com um inchaço muito esquisito na mão esquerda, achei melhor ir lá dar uma espiada. Vamos?

Dei adeus ao meu lazer de sábado à noite e lá fomos nós socorrer o enfermo e dar um alento para minha mãe, que ainda insiste em cuidar sozinha do marido, que tem Alzheimer e mais uma meia dúzia de outras doenças. Eu sabia que o inchaço tinha aparecido fazia alguns dias, será que ele tinha piorado? Por ela ter pedido ajuda da minha esposa, que é médica, e a esta hora da noite, temi pelo pior. Mas não era nada de mais. Encontramos um doente até que bem falante e super desperto, inusual em se tratando do meu pai, que dorme com as galinhas. Um rápido exame revelou que o inchaço era normal, provavelmente o desdobramento de uma queda que ele teve há uma semana. Talvez houvesse algum ossinho trincado, mas nada que precisasse de atendimento imediato, (uma radiografia feita no dia seguinte confirmou a trinca).

Como disse, meu pai estava muito falante, quase eufórico, respondia às perguntas simples da doutora e emendava um discurso cujo sentido só podíamos adivinhar, mas que devia ser muito engraçado, pelo menos para ele, que ria a cada frase e nós junto com ele! E enquanto eu ria, observava meu pai e minha mãe, os dois seres que me deram à luz, pensei que se não fosse pelo amor deles eu não existiria e analisava o quanto sou diferente dos dois, apesar de carregar em mim um DNA muito semelhante ao deles.

Neste momento, me bateu uma sensação de deja vu, que me jogou uns 30 anos lá atrás, na época em que eu  me mudei pra roça, numa casinha que eu mesmo construí, com a ilusão de lá viver até o fim dos meus dias. Em volta da casa fiz uma boa horta, criava galinhas e abelhas, tinha leite barato do vizinho e enchi o pomar de frutas com as quais podia fazer licores e doces. A fruta que primeiro carregou as árvores foi a goiaba e como não deu um bom licor, apelei para o doce. Mas eu tinha que aprender a fazer e por isso recorri a um vizinho, o seu Álvaro, um setentão que reunia os parentes mais velhos para ajudar no feitura dos 25kg de goiabada que fazia em cada tachada. Os jovens não queriam mais saber de fazer doce artesanal, isso era coisa de velho…

E foi para o meio desses velhos que eu fui transportado no meu deja vu. Seu Álvaro sempre brincava, dizendo que a goiabada dele era especial, envelhecida, que precisava de muitos anos pra chegar no ponto. É que ele somava a idade de todo mundo que ajudava e isso dava números enormes, de 200 anos pra cima!

Conheci seu Álvaro num dia em que fui tirar um enxame de abelhas no sítio dele. As bichinhas estavam instaladas num tronco de árvore seco ao lado do mangueiro e viviam ferroando as tetas das vacas, dando prejuízo pro velho que vivia do leite. Munido de fumaça e um machado, dei início ao trabalho de abrir um buraco para ter acesso aos favos com crias, mel e pólen. Depois de 10 minutos machadeando, eu já estava exausto, tinha só feito cócegas na madeira e ainda nem sinal dos favos! Seu Álvaro deve ter percebido minha falta de jeito, pediu licença, pegou o machado da minhas mãos e em 5 minutos fez o buraco certinho. Eu tinha 25 anos e ele 70 e os cabelos todos branquinhos. Depois desse dia eu nunca mais eu achei que um velho era menos que um jovem! Deixei de ter medo de envelhecer…

Seu Álvaro virou uma espécie de herói para mim, um modelo do que eu queria ser quando crescesse. Com ele aprendi a fazer tudo quanto era tipo de doce; de pêssego, de marmelo, de abóbora e de banana. Aprendi as épocas certas de plantio de cada cultura. Descobri que quando cupim começa a aumentar a casa deles com terra nova é porque a seca já está pra acabar, pode arar a terra que a chuva não tarda. Mas o ponto alto foi a feitura do açúcar, da qual eu participei desde o corte da cana madura, a moagem no engenho movido à força animal (um burro velho e empaquento), a fervura do caldo num tacho de cobre por horas e horas, mantendo a temperatura certa pra não queimar nem derramar, até o momento mágico de bater a massa para entrar o ar e ver aquela coisa escura se transformar num açúcar mascavo claro e soltinho. Importantíssima era a limpeza cuidadosa do tacho, feita com limão e sal, pra tirar fora o azinhavre, que se deixado no tacho é envenenamento na certa.

Volta e meia eu estava na fazenda dele, a cada visita aprendia alguma coisa nova. Não passava um mes sem que eu aparecesse lá na fazenda Boa Vista. Um dia ele me botou num canto, me disse pra sentar, fez cara de sério, mais sério do que ele era normalmente e olhou bem dentro dos meus olhos. Não estava bravo, eu sabia que esse era o jeito dele. Seu Álvaro falava pouco, só o necessário, “pra modo das coisas andá nos trio“, dizia ele, mas nesse dia ele fez um discurso, naquele seu sotaque mineiro carregado:

__Chico, você é um rapaz inteligente, estudado, vai entender e poder apreciar o que eu tenho pra contar pra você. Não posso falar disso com todo mundo, mas com você…

E desandou a falar de espiritismo científico, durante quase uma hora me explicou o que era, o que faziam nas reuniões, que eram pessoas sérias e do bem. Ele queria, de qualquer maneira, que eu participasse dos encontros para leitura de um livro que agora não me recordo o título. Para finalizar, me disse que eu poderia, se quisesse, dar uma olhada no tal livro, que havia um exemplar na estante da sala. Ele me deixou a sós, foi pegar uma goiabada com queijo curado pra nós comermos e eu não resisti. Peguei o livro e abri em qualquer página, do jeito que ainda hoje eu gosto de fazer quando vou ler alguma coisa. Abro em qualquer página e vejo o que o acaso tem pra me dizer naquela hora. Levei um susto! O que eu li me informava que aborto era uma coisa abominável, não me lembro os detalhes, mas me senti o último dos últimos, pois não havia muito tempo eu passara pela experiência de ter feito um aborto.

Seu Álvaro voltou com o queijo e a goiabada num prato, viu o livro nas minhas mãos e perguntou se eu tinha gostado. Fiquei travado e acabei dizendo que tinha dado só uma olhada na contracapa, que depois eu ia ler de verdade. Nunca mais voltei na fazenda do seu Álvaro. Naquela época eu vendia mel e de vez em quando entregava um pote pra mulher dele, na casa que eles tinham na cidade. Algumas vezes cruzei com ele, me cumprimentava com seu semblante sempre sério, mas nunca foi além disso.

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5 Respostas to “De onde viemos?”

  1. Aileen Says:

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  2. chicoabelha Says:

    Eu sinto que pertenço de uma maneira muito sutil e profunda, à humanidade toda. Mas quando bota rótulo, restrição, separação… daí não é comigo. Eu não sei “explicar” isso que sinto, gosto da diversidade, mas adoro a identificação que acontece entre aparentes opostos… será que estou viajando?
    Já pensei nisso, que podemos estar perdendo muito por não nos perdermos em grupos… ainda estou esperando aparecer um que me atraia de um modo irresistível…

  3. edna Says:

    A gente é muito parecido nessa questão de pertencer a grupo…Pertencer é uma palavra forte e identidade total também não existe…No entanto se você faz parte, pode passar a imagem de que comunga com TUDO, quando na verdade nem sempre é assim…A gente pode estar perdendo muito por pensar assim, mas sou exatamente igual nesse ponto…

  4. chicoabelha Says:

    Edna, você parece uma terapeuta, mas eu não posso estranhar isso, já que faço igualzinho! rsrsrsrsrs!
    Vamos lá, por partes. Minha reação a todo mundo que quer me convencer a entrar para um grupo, pior ainda se for religioso, é de fuga imediata. tenho horror a pertencer a um grupo e ser identificado pelo rótulo que ele impõe aos membros, isso me dá uma sensação de total perda de liberdade. Sei lá o por que disso, se é bom ou se é ruim, mas assim é.
    Claro que fiquei me sentindo culpado de ter feito o aborto e para evitar lidar com isso acabei fugindo de futuros encontros com o seu Alvaro. Foram as duas coisas somadas, a aversão à participação em grupos e o medo de lidar com a questão do aborto.
    Eu admirava o seu Alvaro pela experiência na roça, pela vitalidade e disposição, mas temia o jeito sério dele…

  5. edna Says:

    Muito legal esse seu relacionamento com o Seu Álvaro, interessante como aparece a pessoa certa na hora certa e ocorrem trocas que era o que precisava naquele momento…E como a informação dos estudos dele apareceu só bem depois, quando a amizade já estava sólida…Quer falar de sua reação ao que leu na página? Pq se afastou dele depois do ocorrido…Contingências ou algo seu?

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