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A Revolta do Pedreiro

junho 20, 2013

cidadao

Seu Amaro é uma pessoa pacata, casado, tres filhos, mineiro do sul do estado, há uns trinta e poucos anos que mora em São José dos Campos. A esposa trabalha de motorista e ele como pedreiro, são tidos como exemplo de respeitabilidade no bairro. São meus vizinhos, moram no caminho de casa e sempre que posso dou um dedo de prosa com ele ou com ela; política da boa vizinhança por um lado e por outro fico sabendo do que rola no bairro.

Ontem, dia de jogo da seleção brasileira, eu voltava pra casa e vi o Seu Amaro em frente de casa, sentado em frente ao portão, o olhar no infinito. Estranhei. Primeiro que nunca vi seu Amaro sentado, ele é um serelepe, não para nunca. E outra pelo horário, era muito cedo pra ele já ter voltado do serviço. De dentro do carro gritei pra ele:

__E aí, seu Amaro, tá tudo bem? To estranhando ver o senhor sentado uma hora dessas.

Ele tirou o cigarro da boca

__To preocupado dimais, meu filho, essas badernage que o povo deu de fazê urtimamente. Isso é coisa de desocupado, tinha logo que mandá prendê essa cambada.

Eu sabia que ele se referia às manifestações que estavam pipocando por todo país, devido ao aumento das passagens de ônibus.

__Mas seu Amaro, isso é a voz do povo, não é coisa de desocupado não. Tem estudante, dona de casa, trabalhador, em algumas cidades até os policiais estão apoiando o movimento!

__Que nada, isso é coisa de filhinho de papai, deu no noticiário de onte à noite. Tudus ele tem carro, uai! Pra que ficá fazeno arruaça por causa de preço de passage de bondão! 

__A manifestação vai ser pacífica, seu Amaro, mas é claro que sempre aparecem uns infiltrados pra desmoralizar o movimento…

Seu Amaro ficou vermelho, nunca o vi tão inflamado:

__Nos tempo que eu vim pra cá pra São José não tinha essas coisa, não. Mas quem é que mandava? Os militar! Ocê ligava o rádio e não tinha notícia de assalto, de droga e bagunça nas rua. Tava bom deles dá um górpe que nem em 64 pra botá orde na casa travêis.

Eu ainda tentei argumentar mas ele não escutava nada:

__Eu queria é que eles ia em Brasília, tirava a Dilma de lá, chamava esse povo dos direitos humano, os juiz e perguntava pra eles: “Cêis tão do nosso lado ou não?”. Se estivesse a favor muito que bem, se estivesse contra mandava tudus ele pra outros país, exilado. Chegava nas passeata, passava fogo numa meia dúzia, prendia o resto num estádio e ia fazendo uma triagem pra vê quem era quem… E pra garantir o sossego, todo mundo pra dentro de casa depois das 10 da noite, que gente decente não sai depois dessas hora…

Nessas alturas eu desisti de argumentar com ele, não tinha mais o que dizer, era muito radicalismo. E que ele não ficasse sabendo que eu iria ao centro da cidade no dia seguinte, participar do Ato Pela Redução da Tarifa de Ônibus, que no fim vai acabar beneficiando ele mesmo… Ainda bem que nessa hora estouraram rojões, ele se lembrou do jogo e seu discurso mudou  como num passe de mágica!

__Ai meu deus, o jogo já começou e eu nem me dei conta…

Ele saiu correndo e me deixou pensando sozinho, no medo que as pessoas tem das mudanças, mesmo aquelas que vão beneficiar suas vidas. De longe, antes de sair, eu ainda escutei a som da voz do Galvão Bueno e sua voz pasteurizada, típica do padrão Globo de locução…

Iniciações

junho 6, 2011

Eu quase que cheguei a lamentar ter passado, logo de cara, no primeiro vestibular que tentei. Cursar agronomia em Jaboticabal seria sinônimo de abandonar a vida boa que vinha levando, até então, no CTA. Tinham sido 7 anos de idílio, 7 anos que se passaram depressa, muito mais depressa do que a minha criança gostaria. Mas eu tive que partir, com 18 anos, já estava mais que na hora do passarinho cair fora do ninho! Pra piorar a situação, o meu companheiro de folguedos, o Carweis, tinha feito o vestibular comigo mas não tinha passado! Resultado, lá fui eu, sozinho, para aquele interiorzão quente e abafado, me instalei numa república com toda minha mudança, mais bicicleta, plantas, mala e cuia e não muita disposição de enfrentar a nova vida de universitário. E a disposição que já era pouca, acabou virando nenhuma, logo nos primeiros dias de aula, quando descobri que o curso de agronomia era muito mais parecido com engenharia, do que eu supus ao me inscrever no vestibular para aquele curso. E com menos de um mes de aula, fui decidido à sala do diretor e pedi o cancelamento da matrícula. De volta para casa, sob protesto do meu pai (é claro!), acabei ganhando uma sobrevida de um ano a mais no CTA!

O retorno não me saiu de graça, fui obrigado a fazer novamente o cursinho do CASD, aquele dos alunos do ITA. Foi o preço que meu pai cobrou para o marmanjo poder continuar usufruindo das mordomias do lar às custas do trabalho dele. Eu não morria de amores pelas aulas no CASD, mas não posso negar que me divertia muito com os professores, cada um mais louco que o outro. Não vou citar nomes, pode ser que eu desperte ciúmes nos que não foram mencionados, mas as únicas fórmulas de física que aprendi na vida, foi por conta das palhaçadas que eles faziam naquele palco que era o CASD nos seus primórdios. Certamente devo a eles meu desempenho pouco melhor que o medíocre, em física, química e matemática, em todos os outros vestibulares que prestei na vida.

Falando em CASD, inevitavelmente me vem a associação com o H8, morada daqueles que me iniciaram em algumas áreas da vida nas quais eu ainda era virgem. Foi com os alunos do ITA, por exemplo, que tomei minhas primeiras biritas e aprendi o caminho do alambique do Antenor, em Caçapava, onde entornei muita pinga de cabeça, superforte, aquela primeiríssima que sai na destilação da garapa da cana. Anos depois, fiquei sabendo que a pinga de cabeça contém metanol, que é um baita dum venenão, que pode até deixar cego o caboclo, e daí entendi as homéricas ressacas com direito infernais dores de cabeça no dia seguinte…

Foi nas paredes do H8, que meus olhos, atônitos, pousaram sobre as primeiras vaginas nuas que contemplei na vida. Revistas de sacanagem é o que não faltava nos quartos que eu frequentava. Eu devorava aquilo tudo com fome de menino guloso, que ainda há pouco tinha sido coroinha, frequentando a missa todos os domingos, e que teria confessado ao padre um simples pensamento libidinoso. De repente, no meio daquelas revistas, eis-me no paraíso!

Nos corredores, à meia voz, em diálogos confusamente obscuros para mim, ouvia muito falar de repressão, ditadura, tortura e guerrilha, mas me parecia que falavam de um outro país. Eu não conseguia relacionar aquele discurso com nada do que acontecia em minha vida naqueles dias. Eram os tempos do “Eu te amo meu Brasil” de Dom e Ravel, canção obrigatória nas aulas de Música ou Educação Moral e Cívica… Eu não podia, ou não queria acreditar, que o Brasil que era vendido na TV e nos jornais, fosse o mesmo em que acontecia a repressão sussurrada nas conversas dos alunos.

Mais do que a conversa dos alunos, eu queria ouvir um outro som, aquele que inundava os corredores do H8, uma música que não tocava na Radio Piratininga e que me pegou logo da primeira vez que escutei: o rock progressivo e psicodélico do Pink Floyd, Yes, Emerson Lake and Palmer, King Crimson e do Genesis. Aquilo me abriu as portas de uma nova dimensão. Junto com as músicas, vieram Aldous Huxley com o seu As Portas da Percepção, e, claro, as chaves para abri-las. Lembro bem de um chá que tomamos numa noite fria de inverno, que era pra ser um inofensivo quentão, mas que fez capotar a mim e ao Carweis, meu companheiro de expedições de toda natureza, pelo CTA afora. Naquele tempo, nada ficava trancado, o ITA podia ser explorado, tínhamos acesso a todos aqueles locais que hoje são fortemente patrulhados. Bons tempos aqueles em que um simples, “sou filho de fulano ou cicrano de tal” nos livrava de qualquer encrenca. Mas nessa noite, a expedição foi mesmo aos nossos departamentos interiores… Sei que quando as coisas voltaram a ficar mais claras, o fundo musical era o Meddle, do Pink Floyd, os alunos já haviam se recolhido, só restaram o Carweis e eu, junto à fogueira, que nessas alturas era só brasas. Nos restava ir para casa, no outro dia tínhamos que acordar cedo pra irmos pra escola, ele pro o Olavo Bilac e eu pro João Cursino.

E lá fomos nós, pelo caminho da quadra, uma estrada de chão batido, que passa por trás dos Hs8, cada um fazendo seu relato da experiência recém vivida. Deviam ser umas duas da manhã, mais ou menos, tinha baixado uma forte cerração e fazia muito frio. De repente, demos com uma cena inusitada. À nossa frente, uma tijela de barro cheia de frutas e flores, um frango preto estendido ao lado e duas garrafas de sidra Cereser. Imagine se a gente teve alguma dúvida! Que nada! Com a garganta seca que estávamos, abrimos cada um uma garrafa e entornamos ali mesmo o líquido refrescante! Só fui chegar em casa quando começava a clarear.