Archive for the ‘Reflexões’ Category

Seu Quim

março 14, 2014

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Como uma pérola incrustada numa ostra, vive seu Joaquim Costa escondido nas faldas da Serra da Mantiqueira. Imagine um velho de 83 anos, os olhinhos bem acesos, travesso e jovial como um moleque que acabou de descobrir a liberdade. Pois esse é o homem que encontrei hoje de manhã em sua oficina, em São Bento do Sapucaí SP, contente da vida, inebriado com sua cachaça, o fazer artesanal de carros de boi.

Seu Quim vive sozinho, é viúvo duas vezes e sente muita falta das duas esposas que se foram, mesmo com todo o amor que lhe dedica a filha Luzia, sua vizinha, que cuida muito bem da casa e do estômago do pai.

Desde criança seu Quim se interessou por mexer com a madeira e foi aprendendo de curioso com um vizinho, a arte de construir esse intrincado objeto de arte que é o carro de boi. Nunca mais largou. Hoje tem uma oficina montada, totalmente em função das centenas de peças diferentes que compõem um carro de boi. Gosta de trabalhar sozinho, pois, segundo ele, ajudante dá muito trabalho. Mesmo os paus mais pesados ele levanta sozinho, com ajuda de alavancas e carrinhos adaptados para esta finalidade.

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“De primeiro”, seu Quim ia na mata cortar os jacarandás, as taiúvas, os paus-de-óleo e as pereiras que usava para fazer seus carros de bois. Hoje já não se pode mais derrubar essa madeira e ele ou compra madeira do norte, ou usa a madeira caída naturalmente nas matas ao redor.

Paciente e didático, seu Quim me mostra cada ferramenta e explica para que servem. Há goivas curvas, trados de diversas medidas, serrotes pequenos e grandes, macetes de todos os tamanhos e pesos, a maioria construídos por ele mesmo, para moldar precisa e artesanalmente, as peças dos carros que constrói para vender. Os clientes são pessoas que encomendam para enfeitar o jardim do sítio como peça de decoração, já que hoje, pelo menos aqui na nossa região, o trator já desbancou faz tempo o carro de bois.

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Seu Quim fez apenas um discípulo, um rapaz de Paraisópolis, que hoje vive de fazer carros de bois. Diz ele que hoje a juventude não quer saber dessas coisas. Ele aprendeu pela “precisão”, num tempo em que o carro de bois era o caminhão da roça. Hoje tá tudo facilitado pelo progresso, quem vai se dar o trabalho de montar um quebra cabeças que não tem praticamente demanda?

Seu Quim sabe que não pode parar, que é o trabalho que lhe dá a saúde e a alegria de viver. Quem capina o entorno da casa é ele mesmo e hoje, ao invés de derrubar árvores, ele está é plantando as madeiras boas de se fazer carros de bois, segundo ele, uma maneira de compensar o “estrago” que fez no passado. Na sua opinião, essa lei devia ter vindo há muito tempo, antes da mata se acabar…

Seu Quim tem uma saúde de ferro, diz ele que só foi ao médico por insistência das filhas, que por ele não carecia. O que disse o doutor depois do checkup? Que ele está em forma, melhor que muito jovem e preparadíssimo para a terceira esposa!

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Post scriptum (no dia seguinte)

Ontem, depois da visita ao seu Quim, ao passarmos pela porteira do sítio, eu vinha comentando com minha esposa e um amigo, que uma pessoa como seu Quim não podia parar. E que se parasse, ou adoecia ou morria. Nessa hora eu imaginei e falei para eles que seu Quim teria uma morte como a que eu planejo para mim, uma passagem tranqüila, sem dramas e grandes despedidas. Uma morte de quem se deu conta que venceu o prazo de validade e resolve partir sereno para a vida eterna.

Pois foi o que aconteceu hoje à tarde com seu Quim, cujo corpo encontraram sentado no sofá da sala.

Eu não vi nem me disseram, mas posso imaginar um sorriso em seu rosto e tenho certeza de que ele escolheu morrer assim, com a sensação do dever cumprido.

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Parece até que ele esperou nossa visita, que estava programada desde meados do ano passado e por sorte aconteceu ontem, um dia antes de sua partida. Guardo dele não somente a lembrança de um homem de fibra, totalmente dedicado a exercer o dom que Deus lhe deu, mas também dois pedacinhos de madeira muito cheirosos que ele nos presenteou; uma rodelinha de sassafrás e uma lasca de pereira, com os quais minha esposa quer fazer um perfume.

Agradeço ao Criador o privilégio de tê-lo conhecido pessoalmente, pois estão cada vez mais raros os mestres que, como seu Quim, largaram cedo os bancos escolares e foram aprender as lições da vida diretamente com a Mãe Natureza.

Que Deus o tenha.

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Mais fotos do seu Quim aqui.

A FESTA DO SENHOR JOÃO

fevereiro 19, 2014

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Há 25 anos o Sr  João das Mercês Almeida realiza uma festa de Santos Reis no Bairro do Jaguari, São José dos Campos SP, como pagamento de uma promessa que fez se o filho se curasse de um cobreiro.

Na verdade a festa já existia antes disso, trazida de Minas Gerais por parentes da esposa do Sr João. A promessa foi de não deixar morrer a tradição da festa, em agradecimento à graça alcançada.

Tradicionalmente, as folias visitam as casas e os presépios no período entre o Natal e o dia 06 de janeiro, data em que os Reis Magos chegaram com seus presentes para o Menino Jesus. Mas os pedidos de visitas nestes dias são tantos, que esta festa acabou sendo “empurrada” para o mês de fevereiro, quando as folias já não são mais solicitadas.

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O Bairro do Jaguari fica na zona rural da cidade, a gente tem que sujar o pé se quiser chegar lá. O local da festa é uma fazenda de gado leiteiro, com construções simples de telha vã. O prédio mais novo e bem cuidado da propriedade é uma capela erigida em homenagem a Nossa Senhora Aparecida.

Até onde a vista alcança só se vê pasto e uma que outra árvore que a foice do roçador ou esqueceu de cortar ou resolveu deixar para dar sombra à criação.

Em frente à sede construiu-se um barracão com estrutura de bambú e lonas plásticas amarelas e azuis, tipo encerado de cobrir carga de caminhão. É neste barracão que o diácono vai rezar a missa que antecede a visita da folia de reis.

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Fui convidado para esta festa por um dos foliões, o Orlando, que trabalha na limpeza de um grande rede de supermercados e participa de folias de reis desde sua infância em Areias SP, onde nasceu, há 57 anos. Orlando sabe que eu gosto de registrar este tipo manifestação e está sempre me convidando. Como eu tinha este sábado livre, resolvi ir com minha esposa, que adora estas festas populares.

Chegamos um pouco antes da hora marcada para o inicio da celebração, com o intuito de entrevistar o festeiro e o pessoal envolvido na produção da festa. Estacionamos o carro no pasto recém roçado. A primeira coisa que notei foi um carro de polícia com dois policiais mulheres, o que estranhei, por se tratar de uma festa particular. Orlando me explicou que hoje em dia não vale a pena arriscar, é melhor se prevenir…

Minha esposa logo entabulou conversa com as duas marungas da folia e lá fui eu entrevistar a turma. Uns mais tímidos, outros mais falantes, uns tristes porque as festas já não são como antigamente, outros orgulhosos com a continuidade da tradição, o que une todos ali é a devoção aos Santos Reis.  Todos que entrevistei tem uma história de cura atribuída “a Santo Reis“.

Quando me dei conta, a missa havia terminado e já se ouvia os instrumentos da folia. Saí da sede onde eu estava entrevistando as cozinheiras que preparavam a carne moída e a salsicha que seria servida mais tarde e fui fotografar os foliões.

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Como eu olhava pelo visor da câmera, não acreditei nos meus olhos quando vi uma mulher parecida com minha esposa segurando a bandeira da companhia. Tive que olhar duas vezes e me lembrar da roupa que ela vestia para me certificar de que se tratava dela e não de uma sósia. Toda sorridente e bailando ao som da música, ela não cabia em si de contentamento. Perdi algumas fotos por conta das lágrimas que me turvaram a vista…

Para mim é impossível participar destas festas sem se envolver. Há alguns anos, quando comecei meu trabalho de pesquisador, achei que seria apenas um fotógrafo colhendo imagens. Mas como bem observou minha esposa, eu não sou um fotógrafo, eu sou um caçador da beleza, daquela beleza que emana da alma do devoto em seu momento mais sublime. Impossível não ser carregado pela força da fé nesses momentos, impossível não se lembrar de onde viemos e para onde vamos.

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SEU CARLINHOS – MOÇAMBIQUE E FOLIA DO DIVINO

janeiro 12, 2014

 

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Seu Luís Carlos Francisco, ou seu Carlinhos, como ele é mais conhecido, nasceu e sempre viveu no distrito de Eugenio de Melo em São José dos Campos SP. Aos 11 anos, já trabalhando com agricultor, se encantou com a beleza dos movimentos de um Moçambique que havia na região e pediu para participar. Dançou durante alguns anos, até que o grupo se desfez porque o mestre acabou indo embora da cidade e seu Carlinhos ficou na saudade…

Muitos anos mais tarde, a pedido do sub-prefeito de Eugenio de Melo, Seu Carlinhos foi encarregado de montar um novo grupo de Moçambique para animar uma festa de São Benedito, o que ele fez com base no conhecimento adquirido quando rapaz. Para ele não foi difícil, pois no seu dia-a-dia na lavoura vivia assoviando as melodias do Moçambique. Já para remontar os versos, o que ele não guardara na memória foi inventando da própria cabeça…

Assim surgiu O Grupo de Moçambique Companhia de São Benedito, que já vai para mais de 30 anos de existência, sempre sob o comando de seu Carlinhos, que hoje só não dança mais porque o corpo não permite. O cargo de mestre passou para seu Marinho, que está na folia desde os primórdios.

Um belo dia, o festeiro da Festa do Divino de Eugenio de Melo resolveu que queria uma folia do divino para arrecadar prendas para a festa e “convocou” o grupo de seu Carlinhos para tal tarefa. Seu Carlinhos recusou, haja vista que nunca havia ouvido falar de uma folia do divino e não tinha a mínima idéia de como montar uma… Entretanto, havia um problema. O cartaz da festa já havia sido impresso e anunciava que o grupo do seu Carlinhos iria fazer a alvorada. E agora, que fazer?

Homem de brio que é, sentindo a expectativa do povo devoto, seu Carlinhos não quis manchar o nome de sua companhia e tomou para si a tarefa de montar uma folia do divino no exíguo prazo de três dias que faltavam para a saída da bandeira. Assim, varou as madrugadas rabiscando letra e música para os versos do que imaginou que seria uma folia do divino em peregrinação fazendo os pedidos de prendas.  Ele conseguiu encher 30 páginas durante essas 3 noites em claro.

Como não havia tempo para ensaiar com o grupo, o que seu Carlinhos fez foi passar rapidamente para o pessoal, nos minutos que antecederam a alvorada, as melodias para que eles acompanhassem o mestre, que faria a voz. Estourados os rojões, lá partiram para o campo os 6 integrantes, munidos de viola, violão e muita coragem para enfrentar o desafio de percorrer 35 km num só dia, pedindo prendas em nome do festeiro. A bandeira foi feita por dona Maria Lucia, esposa do seu Carlinhos, que amarrou as três primeiras fitas, uma para o Pai, outra para o Filho e outra para o Divino Espírito Santo.

Foi uma caminhada difícil, o povo não sabia o que era aquele bando de gente que surgia tocando, cantando e pedindo diante de suas porteiras e muitas deles nem se dignaram recebe-los. Comida só foram comer de verdade lá pelas 10 da noite, exaustos da caminhada. Durante o dia enganaram a fome com bolachas e cafés nas vendas do caminho. Nesta primeira vez, como o povo não estava habituado, ninguém se preocupou com a alimentação dos foliões.

Depois desse primeiro dia, a Folia do Divino de Eugenio de Melo tornou-se uma tradição na cidade e vem saindo a cada ano, não só pedindo prendas para a Festa do Divino na cidade, mas também em outros eventos, tamanha a fama que o grupo ganhou.

Perguntei a seu Carlinhos se os versos que ele canta hoje ainda são os mesmos daquelas 30 páginas compostas nas madrugadas em claro.

__”São nada, Chico, os versos a gente vai variando pelo caminho afora. Se eu canto uma coisa numa casa, na seguinte já é outros os verso e se tem alguém gravando muito que bem, pois do contrário eu não sei repetir. É tudo de improviso, conforme o momento pede que seja.”

__Mas seu Carlinhos, me diga uma coisa. O senhor não conhecia nada de folia do divino e de uma hora pra outra monta uma folia que vem acontecendo há mais de 30 anos! Como o senhor explica isso?

Seu Carlinhos assume um tom solene e depois de um longo silêncio explica:

__”Ah, meu filho, isso não é obra nossa. Pra essas coisas quem ensina e ilumina é o próprio Espírito Santo. Meu trabalho só é permitir que ele se manifeste”.

A bandeira que o grupo usa é a mesma que foi confeccionada lá atrás, só que hoje o bandeireiro que hoje a empunha durante as saídas, carrega agora 15 (quinze) kg de fitas dos pedidos e graças alcançados. Seu Carlinhos foi obrigado a dividir as fitas e fazer uma outra bandeira, criando um novo ritual que é o encontro das duas bandeiras. Essa nova bandeira passa um ano na casa de quem fizer o pedido e o ritual da mudança acontece no 3º domingo de janeiro de cada ano.

E assim vão se reinventando as tradições do nosso povo.

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FOLIA DE REIS

janeiro 1, 2014

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Dona Luisa me convidou para filmar e fotografar a folia de reis da qual ela faz parte como bandeireira, a Companhia de Reis Irmandade do Novo Horizonte. Os integrantes são em sua maioria mineiros ou descendentes de mineiros e todos deles participam de folias de reis desde pequenos. Tendo migrado de Minas Gerais, conservam a tradição que para eles é sinônimo de Natal.

O tempo estava muito abafado e com cara de chuva, por isso resolvi ligar para Luisa, a fim saber como ficava em caso da água despencar do céu. Eles sairiam mesmo assim?

 __”Nóis sái do mesmo jeito, Chico! Faça chuva ou faça sol, a gente tá lá pra cantá pra Santo Reis”.

 Vesti uma calça comprida em respeito à devoção deles e lá fui eu para a rua, quatro horas da tarde, com aquele solão danado martelando na cabeça… O grupo já estava cantando desde a uma da tarde e quando os encontrei ninguém aparentava cansaço. O palhaço, ou marungo ia gritando em frente aos portões:

__ “Ei, patroa, Santo Reis demorô mas chegô, patroa. Vai querê recebê a bandeira de Santo Reis, patroa?”

De dentro da casa uma voz de criança manda esperar que a mãe já vai abrir para a folia entrar. O mestre dá o sinal e a sanfona, tocada pelo garoto de 14 anos, arrasta consigo os instrumentos e as vozes pedindo que a dona da casa aceite a bandeira. Ela aceita e os foliões em cortejo adentram a casa, postando-se em frente ao presépio. As crianças só tem olhos para os palhaços e os olhos da dona da casa se enchem de lágrimas porque folia de reis traz as lembranças de sua infância em Minas Gerais…

A próxima parada é um bar e a dona, que veste um tomara que caia, é chamada para receber a bandeira.

__”Não posso não, tô me sentindo muito nua assim, pede ali para minha irmã segurar, fazême o favor”. 

A irmã toda contente empunha a bandeira e ensaia uns passos de dança com os palhaços, enquanto faz pose para os cliques do fotógrafo. A folia fica pouco tempo no bar, o ambiente não é hostil mas também não é acolhedor. Os bebuns olham os foliões como se fossem uma curiosidade saída dos livros de história do curso primário.

De morada em morada, chegamos à casa grande no fim da rua, onde será oferecido um jantar aos foliões, uma pausa antes de continuarem a peregrinação que deve durar até tarde da noite. A família toda já está reunida ao lado da porteira, para receber a bandeira. O momento é solene.

Recebida a bandeira, sentam-se todos às mesas e tomam guaraná e coca gelados. Um bufê é servido e insistem para que eu coma também. Tenho dificuldade de parar de fotografar, tamanha a riqueza que se revela aos meus olhos nestes encontros. Acabo fazendo meu prato com salada, arroz, feijão, farofa e um tiquinho de carne. Coca ou guaraná? Eu sempre fico na duvida de qual vai me fazer menos mal…

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Passo às entrevistas, enquanto o pessoal faz a digestão e descansa um pouco. Quero fazer um video e preciso das falas das pessoas. Descobri que esta folia de reis tem dois mestres que se revezam no comando e que um dos palhaços passa o ano todo maquinando sua fantasia para sair no fim do ano. Ele mesmo idealiza, compra os adereços e quem confecciona é a vizinha costureira. Sua fantasia tem colares, muito brilho e até um chapéu de onde pendem caveiras de plástico, papais-noéis, sinos, bolas coloridas, espelhos e uma infinidade de outros badulaques.

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As máscaras, que antes eram feitas de couro e pelos de animais, hoje já não assustam mais as crianças. Tudo é comprado em lojas de tecidos e artigos para natal e apesar da evidente criatividade, o material industrializado acaba sacrificando a magia.

Sou apresentado à dona da casa, que gentilmente concorda em ser entrevistada e o que é melhor, autoriza divulgação do material pelo YouTube. Dona Iolanda é mineira de nascimento e há 43 anos está em São José dos Campos. Se emociona ao falar da importância que tem a folia de reis em sua vida e na vida de sua família. Quando criança os irmãos saiam de palhaços nas folias e era ela quem fazia as máscaras com crina de cavalo, tela de mosquiteiro e tinta guache. A avó confeccionava as roupas de chitão, bem mais singelas que estas repletas de lantejoulas e penduricalhos como se vê hoje.

Dona Iolanda nunca deixa de convidar uma folia de reis nesta época do ano e servir uma boa refeição. Chegou até a “importar” folias de Minas Gerais quando não encontra uma local para visitar sua casa. Fiquei curioso, quis saber se as folias de Minas são como as daqui, se tem mulheres que participam, ou se mantiveram mais fiéis à tradição. Ao que dona Iolanda respondeu:

__Tudo igual às daqui, Chico. O mundo está mudando em todo lugar. As mulheres estão ocupando os lugares que antes eram só dos homens, por que não nas folias também?

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Dona Anita

novembro 6, 2013

Quando minha mãe comentou de uma amiga dela com 100 anos e que ainda dirige seu carro, não tive dúvidas, intimei-a no ato:

__Mãe, quero conhecer esta mulher!

__Quando você quiser, meu filho, nós vamos lá.

Ela passou a mão no telefone, marcou uma hora e lá fomos nós para o apartamento de dona Anita, no centro da cidade de São José dos Campos, onde moram ela e uma acompanhante. Uma senhora ereta, impecavelmente vestida, penteada, maquiada e com as unhas pintadas, nos recebeu em sua sala de visitas com uma maravilhosa vista para o banhado, a várzea inundável do Rio Paraíba.

Sentaram-se ela e minha mãe em um sofá e eu numa poltrona ao lado de dona Anita. Nas primeiras palavras que trocamos já percebi que dona Anita não escuta muito bem e minha mãe, que estava mais perto, tinha que repetir o que eu falava. Sem a menor cerimônia, a centenária senhora me indicou que sentasse na mesinha de centro e ficasse exatamente em frente dela. Ponto pra ela!

A voz de dona Anita é de uma mulher de 50 anos, firme, fluida e com um timbre que ao telefone jamais denunciaria sua idade. Foi esta voz que, me encarando de frente perguntou:

__Então, Francisco, o que você quer saber?

__Eu quero saber de tudo, dona Anita e para isso gostaria de filmar a senhora, fazer um video com seu depoimento, tudo bem?

__Ah, não! Você pode filmar tudo que quiser aqui desta sala, menos eu!

Ela foi tão veemente na negativa que eu não insisti. Peguei o gravador e perguntei se podia registrar somente a voz. Outra negativa, o que me deixou com a alternativa do bloquinho de notas, que foi o que gerou este texto, que ela liberou com a condição de que eu usasse um nome fictício. Negócio fechado, ela passou a responder minhas perguntas.

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Sanatório Vicentina Aranha

Dona Anita chegou à cidade de São José dos Campos em 1934, para casar-se com Mário, um ex-tuberculoso que já era seu namorado há anos. Para quem chegava de São Paulo, como ela, a provinciana São José dos Campos era um desafio enorme, que somente um grande amor poderia vencer. Amiga mesmo, só a esposa do médico que tratara de seu marido. Segundo ela, havia muito preconceito com quem vinha de fora e não foi nada fácil integrar-se à vida social da cidade. Sua amiga e confidente era a esposa do médico que cuidara do marido. Assim, a jovem Anita passava suas horas costurando, lendo, cuidando da casa e esperando o primeiro filho.

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Mercado Municipal de São José dos Campos

Quando saia da casa que alugaram na Praça Afonso Pena, era para ir ao mercado comprar frutas, legumes e verduras, muitas vezes pegando carona no carro de bois do seu Argemiro, que vinha 3 vezes por semana trazer lenha que abastecia o fogão de lenha da casa. Era madeira que saía do desmatamento da Vargem Grande, beira do Rio Paraíba, para abertura de novos pastos e campos de cultura. Quando não ia de carro de bois ela pegava a Rua Sete, andando pela estreita calçada de pedras chatas e irregulares, evitando caminhar pelo leito da rua, para não sujar seus sapatos de terra…

Mais tarde, ela aprendeu a andar de bicicleta e dava seus passeios na poeirenta Praça Afonso Pena, que na época era pelada de tudo. A bicicleta, os veículos de tração animal e as pernas, era o que as pessoas usavam naquela época para se locomover. O primeiro automóvel que dona Anita e seu Mário compraram foi somente depois da II Guerra, quando a cidade começou a crescer, com a chegada das industrias, e a abertura de novos bairros.

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Carro de bois em São José dos Campos, usado para transporte de mercadorias antes do automóvel

A diversão de Anita, afora a missa dos domingos, na Igreja de São Benedito, eram os circos, as cavalhadas e as festas que tinham lugar na mesma Praça Afonso Pena. Às vezes, nos fins de semana, o casal era convidado para almoçar na casa de gente importante da cidade e foi com eles que Anita começou a expandir seu círculo de amizades. O cinema só apareceu mais tarde, com a abertura do cine Paratodos e Anita não perdia um filme. Quando queriam fazer algum programa diferente, a opção era Jacareí que na época era um núcleo urbano bem mais desenvolvido que São José dos Campos.

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Praça Afonso Pena, com circo armado, década de 1930

O marido, pouco tempo tinha para ela, já que ficava o dia todo por conta da farmácia da qual era o dono. E à noite ainda tinha que sair para atender chamados de médicos e pacientes que não podiam esperar o dia seguinte para uma injeção ou o que fosse. Quando ficou bem conhecido na cidade, dr Mário, como era chamado, candidatou-se a vereador e exerceu o mandato por 16 anos, numa época em os edis não ganhavam um centavo de salário, pelo contrário, tinham que pagar a maior parte das despesas com dinheiro do próprio bolso.

Dona Anita ia levando a vida doméstica, cuidando da casa e dos 4 filhos, penando com as empregadas muito chucras que ela e dr Mario arrumavam na roça. Era preciso ensinar tudo, desde higiene pessoal até os pratos finos que dona Anita servia para os convidados. Dentre as pessoas que recebeu em sua casa, estão figuras do quilate de um Assis Chateaubriand e um Ademar de Barros. Ela tem fotos que tirou ao lado deles, mas estão numa caixa em cima do guarda roupas, quem sabe em outra oportunidade me mostra…

A menção das fotos faz a emoção brotar, lembra do marido que se foi há mais de 20 anos. Dele não guarda nem a aliança, já que a mesma foi doada na campanha “Ouro para o bem do Brasil”, logo depois do golpe militar de 1964. Com os cofres públicos vazios, foi lançada pelos Diários Associados uma campanha nacional para arrecadar jóias da população. Em troca, ganhava-se uma aliança de latão e um diploma com os dizeres: “Dei ouro para o bem do Brasil”. Nesta brincadeira, foram-se as alianças do casal e alguns preciosos presentes de casamento…

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Depois que o marido se foi, vítima de um AVC, dona Anita passou a cuidar um pouco mais de si. Viajou pelo mundo e fez tudo aquilo que os compromissos do esposo não permitiam, na época. Acontece com muitas mulheres que viveram em função do marido, de desabrocharem para a vida depois da partida do companheiro. Mas ao mesmo tempo que ela fala disso, detecto uma certa tristeza em seu olhar. Ela se antecipa à minha pergunta e afirma:

__Mas hoje, quem sobrou da minha turma? O pessoal todo se foi, só fiquei eu, sozinha aqui neste apartamento, esperando a minha hora.

__Não fala isso, não, dona Anita. Dá pra ver que a senhora está forte, bonita, mais firme que muita mulher com metade de sua idade!

__Ah, Francisco, eu conheci 7 gerações, desde meus avós até meus tataranetos. Mas me sinto muito solitária aqui, só saio para fazer as compras da casa e o meu remédio da pressão, que é o único que eu tomo. Mas a pressão não incomoda nada, não me impede de fazer o que eu tenho que fazer, não!

__Surpreendente para uma mulher uma pessoa de sua idade, dona Anita. O que a senhora come para manter esta saúde toda?

__Bom, eu rezo o terço todos os dias, isso é o alimento da alma, que pra mim é o mais importante e já faz vinte anos que como frango cozido com tomate, arroz e uns legumes cozidos. O que? Coisa crua? Deus que me livre! De tarde eu tomo um chazinho com bolo e margarina. Mas eu nunca fumei e nunca bebi, acho que isso ajuda, não é?

Fica pensativa, o silêncio instala-se na sala por um tempo.

__Acho que meu problema é não ter problema. Vejo essas mulheres do povo brigando, discutindo, sofrendo naqueles ônibus horríveis. Tenho inveja delas…

Resolvi não continuar o assunto, pois na verdade estou de pleno acordo com dona Anita, uma vida sem desafios fica triste, carece de sentido. Me veio a curiosidade de saber como ela ocupava seu tempo, sozinha naquele apartamento e perguntei:

__Mas além do terço, dona Anita, o que a senhora faz o resto do dia aqui sozinha? – a resposta me surpreendeu…

__Ah, eu fico no computador!

__Uma pessoa da sua idade, que bacana! E o que a senhora vê na internet?

__Ah, meu filho, tudo que eu tenho direito, vejo de tudo!

__E o que é esse tudo, dona Anita?

__Tudo que você quiser imaginar…

Com esta resposta evasiva ela me calou e nos convidou para tomarmos um chá com bolo e margarina, na cozinha. Ela se levanta sozinha do sofá, recusa e faz cara feia quando faço menção de ajudar. Também não gosta de ser servida, ela mesma verte o chá em sua xícara e nos serve do bolo que também foi assado por ela. A empregada, que escuta nossa conversa se intromete e diz que ela mesma pinta as unhas e corta o cabelo, nunca foi a um salão de beleza!

De repente dona Anita para de falar e fica contemplativa, olhando pela janela.

__O que foi, dona Anita, lembrou de alguma coisa que quer me contar?

__Lembrei sim, de uma coisa muito importante que eu tenho imenso prazer de fazer.

__O que é dona Anita?

Ela então nos leva para perto da janela e mostra umas arvores e pergunta:

__Vocês estão vendo?

__Vendo o que, dona Anita?

__Os dois gatinhos ali em cima da copa das árvores. Elas formam dois gatinhos se beijando, não estão vendo?

Finalmente entendi que os gatos não eram de carne e osso, e sim as copas das árvores que, com um pouco de imaginação deixam ver um casal de gatos se beijando.

__Aquele da esquerda é o Mário e a gatinha sou eu…

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Este é o retrato aproximado de uma centenária senhora que vive escondida em nossa cidade. Quantas mais haverão como ela, esperando um pesquisador curioso? Não me canso de escavar estes tesouros, alguns mais escondidos, outros à flor da terra. Ficou evidente que ela gostou da entrevista, mesmo sendo uma pessoa reservada. Dona Anita me deixou as portas abertas e eu prometi voltar tão logo ela tire as fotos de cima do armário e resolva mostrá-las.

Antes de irmos embora, ainda deu tempo de perguntar à dona Anita se ela não tinha problemas para renovar a carteira de motorista, dada a idade avançada. Ao que ela respondeu:

__Mas eles não tem motivo nenhum para me negar a renovação. Eu enxergo bem, tenho coordenação motora e outro dia esteve aqui um médico gerontologista que veio estudar o “meu caso”. Ele colocou aqueles eletrodos na minha cabeça, fez um monte de perguntas e ontem chegou o resultado, diz que eu tenho o cérebro de uma jovem de 20 anos! Ai deles se me me negarem esse direito! – e deu uma boa risada!

Dona Anita pode não ser perfeita, mas é um exemplo de perseverança e amor à vida.

O Pinto do Boi, o Saci e a Bomba Atômica

agosto 6, 2013

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Estávamos nos preparando para sair quando minha amiga Teca soltou a pergunta:

__ E aí, Chico, o que você acha de eu levar o pinto do boi?

__Ótima idéia, Teca, tudo a ver, vai fazer sucesso! Bora levar esse pinto pra reunião!

Ela apanhou sua bolsa, o celular, o pinto seco do boi, que é um objeto cilíndrico de 60 cm de comprimento, parecendo feito de plástico reciclado, trancou a porta da casa, entramos os dois no carro e partimos em direção à cidade de Caçapava, onde nos esperava uma reunião do Núcleo Içá Bitú, o braço regional da Comissão Paulista de Folclore para o Vale do Paraíba.

A cada mês, um grupo de pessoas se reúne para discutir estratégias que visam a salvaguarda do folclore na região. O responsável por disparar os emails convidando a turma sou sempre eu. Contabilizo os que confirmam, a fim de que o dono da casa possa ter uma previsão do número de bocas que se farão presentes para o almoço, que é gentilmente oferecido pelo anfitrião.

Para esta reunião em Caçapava, uma das participantes, a minha amiga Lucia, que mantém o verdadeiro Sítio do Pica Pau Amarelo, cogitou da conveniência de levar à reunião, 4 japoneses que estavam passando férias em sua casa. A primeira coisa que me ocorreu foi querer saber se eles falavam o português. “Não, Chico, somente um deles fala o português e mesmo assim mal e má…”, foi a resposta que ela me deu. Não querendo contrariar minha amiga Lucia, uma virginiana arretada, eu disse que tudo bem, mas ela que cuidasse de entreter os seus japoneses, já que, certamente, eles não teriam muito o que fazer durante nosso encontro.

No caminho para Caçapava, fui discutindo com Teca o assunto dos 4 japoneses que nos aguardavam na reunião. Eu havia dito sim para a Lucia sem consultar o grupo, o que será que eles iam achar? Será que os japoneses iriam ficar sentados durante 3 horas olhando para nossas caras ou iriam interagir? Como seria pinto de boi em japonês? Numa tentativa de integrar os orientais, eu já estava bolando uma mímica sonora para que eles entendessem o que era o pinto do boi, quando me lembrei que nossa amiga Misae iria estar presente à reunião. Misae nasceu na ilha de Okinawa e sabe falar japonês, o que me deixou mais relaxado naquele momento. Pelo menos os japoneses não iriam se sentir deslocados…

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A casa da nossa anfitriã em Caçapava, a Darcy, é um misto de museu com loja de antigüidades. Ela foi juntando bonecos de pano, enfeites religiosos, imagens de santos, missais que o povo não quer mais e enfeitando com eles os cômodos da casa. É difícil achar um espaço livre, sem objetos, nas paredes daquela casa. Tudo chama o olhar, mas o que mais me interessou foi um santinho de Nossa Senhora Aparecida que na verdade é uma propaganda política de uma figura local. Disse a Darcy que, antigamente, os políticos patrocinavam romarias à cidade de Aparecida e forneciam os santinhos com seus nomes para as eleições vindouras. Descobri, assim, a origem do nome “santinho“, que é o panfleto que hoje em dia mostra o rosto dos políticos, mas que de santo mesmo não tem nada…

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Quando chegamos à casa da Darcy, os japoneses ainda não estavam lá. Mas já haviam chegado o seu João, um carreiro que no século XXI ainda lida com bois, e o Carajás, um senhor que também já mexeu com bois de carro na infância. A Teca, que também é da roça, segurando o pinto do boi nas mãos com a maior sem cerimônia do mundo, foi logo perguntando aos dois se eles sabiam do que se tratava. Eles, educadamente disseram que não… Claro que conheciam, mas preferiram não correr o risco de ferir susceptibilidades.

Não demorou muito e chegou uma senhora que eu não conhecia e que veio de carona com seu marido. Descobri que a Madalena não só era casada com um nissei, como também falava japonês. Muita coincidência! Nessas alturas eu relaxei de vez, com as duas falantes para servir de intérpretes. Mas o melhor estava ainda por acontecer.

Lúcia chegou com os seus 4 japoneses, três senhoras e um menino de 11 anos, depois de ficar perdida pela cidade. Essas pequenas localidades do Vale do Paraíba tem o dom de emaranhar o turista em suas ruelas estreitas e com sinalização precária. O aumento do numero de carros tem sido sempre mais rápido do que a necessária adequação das vias.

Pois bem, feitas as apresentações, deu-se início à nossa reunião e tão logo pode, Lucia tomou a palavra para apresentar seus amigos e disse que uma de suas amigas, a Yumiko, iria mostrar um trabalho sobre o saci. Saci? Será que eu tinha escutado bem? Uma japonesa do Japão mostrar um trabalho sobre o saci? Lucia não havia me falado nada sobre isso…

Yumiko, que já viveu um tempo no Brasil, é uma professora de português para filhos de brasileiros, os dekasseguis que voltaram para o Japão. Essas crianças nasceram no Japão e apesar de terem pais brasileiros, não tiveram contato com a cultura brasileira. Para ensiná-los, Yumiko usa os personagens do Sítio do Picapau Amarelo, dos quais ela é fã. Tanto ela gosta da criação infantil de Monteiro Lobato que seus filhos japoneses foram criados com histórias de Dona Benta! Disse ela que isso proporcionou a eles uma grande liberdade e uma alternativa ao estrito comportamento japonês.

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O trabalho que Yumiko nos mostrou eram desenhos coloridos em cartolina, de uma história do saci, feitos por essas crianças, com legendas em português e japonês. Eu fiquei impressionado com o interesse de uma professora japonesa pela cultura brasileira. A outra japonesa, fiquei sabendo depois, faz bicos de pena pelos lugares que viaja. Havia um livro dela com desenhos de São Paulo, um primor de traço que retrata o Mercado Municipal, a igreja da Sé, o Pátio do Colégio e outros pontos conhecidos da cidade. Depois ela leva para o Japão e mostra o Brasil pelos olhos dela. Maravilha de se ver! Na pressa, acabei  não tirei fotos do livro, mas minha amiga Dóris Bonini foi mais cuidadosa e clicou o livro (grato Dóris!)

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Não me lembro como foi, mas o assunto do pinto do boi veio à tona e o mesmo correu as mãos de todos os presentes. Explicou-se que o objeto é usado como relho, um chicote feito para dar nos animais de montaria e quando os japoneses ficaram sabendo do que era feito, fizeram cara de espanto recatado mas depois caíram na risada. Alguém quis saber como se diz pinto em japonês e aí foi a vez dos brasileiros rirem. Pinto em japonês é tim tim, exatamente o mesmo que dizemos quando brindamos com bebidas! Pronto, os japoneses estavam integrados de vez.

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Num clima de festa, fomos comer o delicioso almoço preparado pela família da Darcy no fogão de lenha. Polenta, arroz, feijão, farofa, carne ensopada, frango assado, salada de rúcula com tomate, não teve quem não repetisse o prato! De sobremesa havia taiada, maria mole, sorvete e mais alguma coisa que não me lembro… Foi difícil parar de comer!

Lá pelas tantas, apareceu uma japonesa que eu ainda não tinha visto. Será que ela tinha ficado dormindo no carro e levantou para comer? Não, tratava-se da Noêmia, uma vizinha da Darcy que foi convidada justamente por causa da presença dos amigos da Lucia.

Dona Noêmia logo entabulou conversa com os outros japoneses. Curioso, eu tentava entender o que diziam e Yumiko, percebendo meu interesse, ia traduzindo para mim. Noêmia viera ao Brasil com 25 anos, para arrumar casamento com japoneses que tinham se fixado no país. Como a maioria dos imigrantes eram homens, era preciso importar mulheres do Japão para casarem-se com eles. Foi assim que Noêmia chegou à cidade de Caçapava, casou-se com um agricultor e ali ficou até hoje.

Noêmia contou também que escutou as explosões nucleares que deram fim à Segunda Guerra, três estouros assustadores que ficaram para sempre em sua memória. Não sei porque, naquele momento senti uma profunda reverência por aquela mulher, talvez pelo fato de ela haver presenciado um momento de grande dor da humanidade. Fiquei emocionado e em silêncio agradeci a Lucia por ter tido a idéia de trazer gente do outro lado do mundo para um encontro que em princípio deveria tratar da cultura local. Gente que com certeza valoriza muito mais nossa cultura que muitos de nós brasileiros.

Comentando com a amiga Misae sobre a coincidência de estarem reunidos ali tantos japoneses, ela me chama à atenção para o fato de que no dia seguinte, 06 de agosto, comemora-se o sexagésimo oitavo aniversário das bombas atômicas que caíram sobre o Japão determinando o fim da Segunda Guerra Mundial…

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A Ferradura De Burro Com 7 Furos

julho 6, 2013

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Leite ferrado é um antigo remédio caseiro que se fazia na roça e que era usado no combate aos vermes. Hoje em dia, com a invasão das panacéias dos gigantes da indústria farmacêutica, estas receitas praticamente cairam no esquecimento. Quem é que vai se dar o trabalho de juntar picão, duas qualidades de hortelã, erva-de-bicho, erva-de-santa-maria, ruibarbo, raspas de chifre de carneiro, colocar tudo isso numa panela de ferro, adicionar leite e jogar dentro uma ferradura em brasa, quando se pode comprar um vermífugo ou vermicida genérico por um par de reais na farmácia da esquina? Mesmo eu, que sou fã das receitas tradicionais, nunca me animei a juntar todos esses ingredientes e preparar a tal poção.

Meu interesse por remédios contra vermes vai além da curiosidade de pesquisador de folclore. Como eu tenho uma horta e estou sempre com as mãos na terra e no esterco, pelo uma vez por semana tomo um chàzinho de erva de santa maria com boldo e hortelã, para expulsar algum possível intruso instalado em minhas entranhas. De modo que quando fiquei sabendo que minha vizinha, a dona Vicentina, costumava dar o leite ferrado para seus netinhos, mais que depressa fui falar com ela, perguntar quando seria o próximo preparo do remédio.

Encontrei dona Vicentina no terreiro, dando de comer às galinhas, calça jeans por baixo da saia, botinão de couro, sua cabeca branquinha se destacando contra o azul-celeste da parede. Na roça costuma-se pintar as paredes com a cor do céu, dizem que espanta as moscas. Fico imaginando se não espantasse…

__Bom dia, dona Vicentina! Quando é que vamos ter frango na idade de ir pra panela?

__Mais uns dois mês, meu fio, que bicho criado só no milho, sem hormônico e tibiótico é mais demorado mezz.

Enquanto joga o milho ela ralha com um cachorro policial branco, que fica atentando as pobres aves.

__Passa daqui, seu fio duma égua! Vou ter que acabar prendendo esse sem vergonha, senão ele come os frango tudu antes di nóis. Ocê tá quereno frango pra hoje? Cumpadi Bastião me falô inda onti que tava quereno dá fim nos dele

__Não dona Vicentina, eu vim é por causa do leite ferrado, que eu fiquei sabendo que a senhora faz para os seus netos.

__Fazia, Chico, hoje não tenho mais como.

__E por que isso? Falta alguma planta? Eu arrumo, vou atrás e arrumo pra senhora.

__Não é planta, não, Chico, o que tá fartano é a ferradura. Perdi a ferradura da úrtima veiz que mudemo de casa e nunca mais fiz. Tô usano o remédio do postinho memo, que a dotôra receitô pras criança

__Mas não seja por isso! Amanhã mesmo eu arrumo uma ferradura pra senhora e tá resolvido!

__Aí é que , não pode quarqué ferradura. Tem que ser ferradura de burro e com sete furo!

Eu, na minha santa ignorância perguntei:

__E ferradura de burro é diferente da de cavalo, dona Vicentina? E por que de 7 furos?

__Mai craro que é diferente! A de burro é de burro e a de cavalo é de cavalo, uai! E só dá certo com sete furo, se  com mais ou com meno furo é trabaio pirdido

Confiante de encontrar o que ela me pediu, disse a ela que em breve voltaria com a tal ferradura de burro com sete furos.

__E se eu encontrar a ferradura do jeitinho que a senhora pediu vamos ter de novo o leite ferrado? A senhora promete?

__Tá prumitidu. É um remédio gostoso dimais da conta, as criançadinha adora e inté os mais véio tóma. Ocê trazeno nóis fáis.

Durante meses eu procurei pela tal ferradura, mas minhas buscas foram infrutíferas. Todas as que encontrei tinham de 6 ou 8 furos, porque os cravos são colocados no casco do animal aos pares, simètricamente. Sómente quando o animal é defeituoso é que se faz um número ímpar de furos. Fui a antiquários, brechós, feiras do rolo, todos me diziam que era muito difícil encontrar uma ferradura de 7 furos e ainda mais de burro! Comecei a desconfiar que ferradura de burro com 7  furos era uma lenda e que dona Vicentina inventou essa história apenas para se livrar de mim e não ter que preparar o leite ferrado, que dá um trabalhão danado…

Mais de ano se passou, eu já havia desistido de encontrar a tal ferradura. Um belo dia, minha mestra na pesquisa de folclore, dona Angela, me sugeriu procurar o povo ligado ao tropeirismo em nossa cidade. Não por causa da ferradura, que ela nem sabia dessa minha busca. Ela apenas achava este aspecto de nossa cultura andava um tanto quanto negligenciado pelo saber oficial nos últimos tempos.

A princípio não me animei muito não, pois, para mim, tropeirismo era algo do passado, morto e enterrado depois do advento dos caminhos de ferro e mais tarde os de asfalto. Se havia interessados nele, seria por puro saudosismo, assim eu imaginava. Ledo engano.

Assuntando com amigos, descobri que o tropeiro, figura chave no transporte de mercadorias desde fins do século XVII até meados do século passado, sobrevive ainda hoje “encostando lenha” ou transportando a produção agrícola em lugares onde não há estradas ou que o trator não consegue chegar. “Encostar” ou “puxar” lenha, na linguagem deles, quer dizer adentrar uma plantação de eucalipto com burros e mulas, carregá-los até a beira da estrada onde está o caminhão que vai levar a madeira para ser utilizada para papel, lenha para queimar ou construção civil.

Não são muitos estes que trabalham desta maneira ainda hoje, mas todos que conversei tem orgulho do que fazem e o fazem por opção; dentre estes, alguns são jovens com menos e 20 anos.

Em torno desta atividade, existe todo um mundo de fazedores que suprem a demanda dos tropeiros, fazendo toda sorte de material de uso deste ofício. E foi justamente um destes que fui procurar, o Daniel muladeiro, que comercia com muares e trabalha com couro de maneira artesanal.

Daniel tem um rancho situado a dez minutos de carro do centro da cidade, um verdadeiro baluarte da cultura muar e eqüina, que concentra pessoas interessadas em tudo que diz respeito à cultura tropeirista. Acabei ficando amigo do Daniel, que percebendo meu interesse, sempre me convida para uma breganha ou cavalgada.

Numa das visitas ao rancho, Daniel me apresentou o Reinaldo, um rapaz que se dedica à arte de fazer ferraduras. Reinaldo, mais conhecido como Gordo Ferreiro, estava lá com seu carro-oficina para ferrar duas mulas. As ferraduras que Gordo faz são sob medida, para que se adaptem adequadamente aos cascos dos animais, coisa chique! Já chegou a fazer até ferraduras ortopédicas para um cavalo que teve os tendões da mão rompidos.

Pois bem, Gordo retirou a parafernália do carro e montou sua oficina instantânea. Uma forja à gás, uma bigorna de 60 kg, martelos, marretas, pinças, torquesas, grosas e mais um tanto de ferramentas que não guardei o nome. Pedi licença para filmar e fui bombardeando o rapaz com perguntas, um defeito de todo pesquisador… Enquanto limpava e cortava os cascos, ele ia me contando que aprendeu a ferrar animais com o pai, tomou gosto pela coisa e decidiu que era isso que ia fazer pelo resto da vida. Fez vários cursos de especialização e do seu trabalho como ferrador tira o sustento de sua família.

Lá pelas tantas me deu um estalo e lembrei da ferradura de burro com sete furos, perguntei ao Gordo se ele já tinha visto alguma na vida.

__Olha, Chico, o certo é um numero par de furos. A gente só faz numero ímpar se o animal tiver o casco com defeito.

__Mas você já viu alguma na vida? É que eu preciso de uma ferradura dessas para fazer um remédio caseiro, já faz tempo que estou procurando…

__Ver mesmo eu nunca vi, mas a gente pode fazer. É dois palito!

Mas é claro, o cara era ferrador e fazedor de ferraduras! Eu até agora esperava topar com a lendária ferradura por acaso, nunca que alguém a confeccionasse! Em menos de 5 minutos o Gordo me colocou nas mãos, já devidamente resfriada, o objeto de desejo que eu passara mais de ano procurando. Dona Vicentina que me aguarde! Enquanto isso ela fica pendurada atrás da porta de entrada de casa, que é pra ver se minha sorte melhora…

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Quatro meses mais tarde, marquei com dona Vicentina e num sábado de manhã fizemos o esperado leite ferrado, na versão dela.

 

A Revolta do Pedreiro

junho 20, 2013

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Seu Amaro é uma pessoa pacata, casado, tres filhos, mineiro do sul do estado, há uns trinta e poucos anos que mora em São José dos Campos. A esposa trabalha de motorista e ele como pedreiro, são tidos como exemplo de respeitabilidade no bairro. São meus vizinhos, moram no caminho de casa e sempre que posso dou um dedo de prosa com ele ou com ela; política da boa vizinhança por um lado e por outro fico sabendo do que rola no bairro.

Ontem, dia de jogo da seleção brasileira, eu voltava pra casa e vi o Seu Amaro em frente de casa, sentado em frente ao portão, o olhar no infinito. Estranhei. Primeiro que nunca vi seu Amaro sentado, ele é um serelepe, não para nunca. E outra pelo horário, era muito cedo pra ele já ter voltado do serviço. De dentro do carro gritei pra ele:

__E aí, seu Amaro, tá tudo bem? To estranhando ver o senhor sentado uma hora dessas.

Ele tirou o cigarro da boca

__To preocupado dimais, meu filho, essas badernage que o povo deu de fazê urtimamente. Isso é coisa de desocupado, tinha logo que mandá prendê essa cambada.

Eu sabia que ele se referia às manifestações que estavam pipocando por todo país, devido ao aumento das passagens de ônibus.

__Mas seu Amaro, isso é a voz do povo, não é coisa de desocupado não. Tem estudante, dona de casa, trabalhador, em algumas cidades até os policiais estão apoiando o movimento!

__Que nada, isso é coisa de filhinho de papai, deu no noticiário de onte à noite. Tudus ele tem carro, uai! Pra que ficá fazeno arruaça por causa de preço de passage de bondão! 

__A manifestação vai ser pacífica, seu Amaro, mas é claro que sempre aparecem uns infiltrados pra desmoralizar o movimento…

Seu Amaro ficou vermelho, nunca o vi tão inflamado:

__Nos tempo que eu vim pra cá pra São José não tinha essas coisa, não. Mas quem é que mandava? Os militar! Ocê ligava o rádio e não tinha notícia de assalto, de droga e bagunça nas rua. Tava bom deles dá um górpe que nem em 64 pra botá orde na casa travêis.

Eu ainda tentei argumentar mas ele não escutava nada:

__Eu queria é que eles ia em Brasília, tirava a Dilma de lá, chamava esse povo dos direitos humano, os juiz e perguntava pra eles: “Cêis tão do nosso lado ou não?”. Se estivesse a favor muito que bem, se estivesse contra mandava tudus ele pra outros país, exilado. Chegava nas passeata, passava fogo numa meia dúzia, prendia o resto num estádio e ia fazendo uma triagem pra vê quem era quem… E pra garantir o sossego, todo mundo pra dentro de casa depois das 10 da noite, que gente decente não sai depois dessas hora…

Nessas alturas eu desisti de argumentar com ele, não tinha mais o que dizer, era muito radicalismo. E que ele não ficasse sabendo que eu iria ao centro da cidade no dia seguinte, participar do Ato Pela Redução da Tarifa de Ônibus, que no fim vai acabar beneficiando ele mesmo… Ainda bem que nessa hora estouraram rojões, ele se lembrou do jogo e seu discurso mudou  como num passe de mágica!

__Ai meu deus, o jogo já começou e eu nem me dei conta…

Ele saiu correndo e me deixou pensando sozinho, no medo que as pessoas tem das mudanças, mesmo aquelas que vão beneficiar suas vidas. De longe, antes de sair, eu ainda escutei a som da voz do Galvão Bueno e sua voz pasteurizada, típica do padrão Globo de locução…

Seu Genildo

maio 6, 2013

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Seu Genildo está pintando minha nova casa nas horas vagas. Chega lá pelas 5h e vai embora um pouco antes da novela das 9 na Globo, que ele não perde de jeito nenhum. Sua casa fica um pouco abaixo da minha, uns 300 metros pela esburacada estrada de terra. De shorts, sem camisa e uma surrada havaiana nos pés, quem olha seu Genildo não imagina que ele tem 5 carros semi novos na garagem de sua casa. Diz ele que tal fartura é para não ficar na mão na hora de sair; se um carro falhar, ainda tem mais 4…

Enquanto enche com massa corrida os buracos das paredes, este senhor de 49 anos vai me contando sua infância em Brasópolis.

__A vida hoje é muito boa, Chico. Essa molecada tem de tudo do bom e do melhó. É computador, é televisão, é vido gueime e ainda reclama. Sabe quando eu fui botar o meu primeiro sapato nos pé? Com 13 anos! Nóis andava era descalço memo. Dava dó de botá aquele sapato novinho de couro, naquele poerão da roça. Eu carregava ele na mão e só carçava quando chegava perto da cidade.

Outro dia me preparei um chá e levei para seu Genildo, que tomou de uma golada só e fez uma careta feia.

__Minha Nossa Senhora, o que é que ocê pôis nesse chá, Chico?

__É boldo, hortelã, erva doce, cidreira, manjericão e mastruço. Bom pro fígado e ainda espanta os vermes, Seu Genildo.

__Mas então isso é remédio, num é chá. E sem açúca, vixe que coisa ruim!

Seu Genildo tem os dentes todos falhados e diz que dentista só se for com anestesia geral, que ele morre de medo dessa gente de branco. De pequeno, quando tinha dor de dente, a mãe mandava botar leite de taiuveiro. Era tiro e queda, a dor passava, mas depois de alguns dias o dente ia rachando, pretejando e caindo aos pedaços até que só sobrava o buraco da raiz…

Numa das orelhas ele coloca o cigarro de palha apagado, na outra uma folha verde.

__Pra que serve essa folha na sua orelha, seu Genildo?

__Você que conhece pranta num sabe não? Isso é pra azia, Chico. Quarqué pranta  moiada serve.

__O que é pranta moiada, seu Genildo?

__Pranta moiada é dessas que ocê espreme e sai um cardo. Botô na orêia a azia some em 5 minuto

Seu Genildo toma uma pinga lascada, mas segundo ele agora tá controlado, bebe pouco em relação ao que bebia uns anos atrás. A culpa é da tal de Lei Seca. Antes ele bebia para poder relaxar e dirigir melhor. Se gaba de nunca ter tido um acidente, já que, por garantia, ele parava até em sinal verde… A esposa, segundo ele, não se incomoda com a cachaças que o marido toma, porque sabe que ele bebe com responsabilidade… Teve um ano que ele bebeu mais de 300 litros de pinga! Agora é menos, bebe só um litro por semana e só nas refeições…

Seu Genildo me mostra um dedo torto e conta que foi esmagado numa prensa, quando ele era jovem e tomava todas. Nesse tempo ele trabalhava de segurança em carro forte e não sabe como não virou bandido, porque o dinheiro que passava por suas mãos era muito.

__Nesse época do acidente eu bebia demais da conta. Eu tinha tanto arco no sangue que nem a nestresia num pegô. Foi preciso apricá a injeção mais forte que eles tinha no hospital, porque senão eu num guentava a dô.

A mulher de Genildo trabalha fora e quando ela não pode cozinhar ele se vira com um café e pão com mortadela. Mesmo que tenha comida na panela, ele não pega, fica mesmo é no pão com mortadela. Foi acostumado assim pela mãe, a ser servido. E com 26 anos de casado, ele nunca tirou comida da panela, quem faz seu prato é a mulher! O casal tem 4 filhos e a cada parto, durante o resguardo da mulher, a comida dele e dos filhos já nascidos sempre foi café com pão, que perto do fogão ele só chega para esquentar a água do café…

__Mas o senhor nunca morou sozinho, seu Genildo?

__Já morei, sim.

__E como o senhor fazia pra comer?

__Nesse tempo eu namorava uma menina de família até 10h da noite. Depois que ela ia embora eu abria a porta da casa e aquilo enchia de puta e travesti. Eles é que cozinhavam pra mim.

Nesse tempo ele aprontava com essa turma. Contou, se gabando, que até banho em caixa d’água de vizinho ele tomava, só de farra… Diz ele que os vizinhos sabiam mas não falavam nada…

__Antes o povo era mais bom, Chico. Vai fazer uma coisa dessas hoje…

Como eu tinha pressa de me mudar para a casa nova, seu Genildo trabalhou também no domingo, pra ver se me liberava um quarto pra eu enfiar minha mudança. Na hora do almoço ofereci um arroz com ovo pra ele, que recusou. Passou o dia todo na base do café frio e super doce, que ele trouxe numa gafarra pet. Café e cigarro de palha.

Quando foi lá pelas 4h da tarde ele se desculpou:

__Chico, eu não vou podê terminá o serviço hoje, mas amanhã eu prometo, esse seu quarto fica pronto.

__Tá cansado, seu Genildo, ou vai ver o jogo?

__Não, é que eu já atrasado pro Domingão do Faustão, o único programa que presta da gente  no domingo.

__Tudo bem, seu Genildo, mas antes de sair não se esqueça de fechar bem as janelas que o tempo tá virado pra chuva.

O Paraguay Que O Brasil Não Conhece

abril 21, 2013

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Em circunstancias normais, eu jamais pensaria em fazer turismo ou passear no Paraguay. Mas quando um casal amigo meu, Hamilton e Patrícia, me falaram que estavam de partida para este país vizinho com o propósito de ministrar um curso de Terapia Florestal, eu praticamente me convidei para ir com eles e seus dois filhos pequenos. Afinal, terapia é uma das minhas paixões nesta vida e como minha vida está de pernas para o ar, achei que valia a pena arriscar algo fora do comum.

Faz já alguns anos, Hamilton projetou e instalou todos os equipamentos de eco-aventura dentro daquela que é a primeira reserva florestal particular no país vizinho. A eco reserva de M’Batovi está localizada a 70 km da capital do país, Assunção, e é mantida pelo casal Jacinto e Marta, empresários paraguaios que resolveram inovar na área do turismo, com este empreendimento sustentável. Funcionando já há 7 anos com guias locais, rapazes e moças, os donos resolveram aprimorar os serviços oferecidos pelo parque e pediram a Hamilton e Patrícia, um curso de meditação e consciência ambiental para todos os que estão envolvidos com os trabalhos na eco-reserva.

Meus amigos não fizeram objeção à minha companhia e depois do sinal verde do pessoal do Paraguay, combinamos que eu iria com eles, de ônibus, enfrentar as 20h de viagem até Assunção. Jacinto e Marta são compadres de Hamilton e Patrícia e se tornaram muito amigos depois que começaram a trabalhar juntos.

Antes de partir para qualquer destino eu gosto de saber um pouco sobre o que vou encontrar à frente, de modo que escrevi para Marta e pedi que ela me sugerisse alguma leitura informativa sobre o Paraguay. Gostei da resposta dela, que não me indicou nada e simplesmente citou o slogan da Secretaria de Turismo paraguaya:

“Paraguay, tenés que sentirlo”

Apesar da sugestão daquela que seria minha anfitriã no Paraguay, não resisti e acabei dando uma busca aleatória na internet. Encontrei coisas muito interessantes.

Descobri que o Paraguay, com seus 406 750 km2, tem bem menos gente que o estado de São Paulo, com seus 248.209 km². Enquanto o estado brasileiro tem 41 252 160 habitantes, todo o território paraguaio abriga apenas pouco mais de 7 000 000 de almas! Seis vezes menos gente em praticamente o dobro da área! Isso fica muito evidente nas largas distancias entre as casas nas periferias das cidades e no baixíssimo numero de prédios de apartamentos na capital, Assunção, que tem bem menos de 1 000 000 de habitantes.

Numa rápida pesquisa sobre a língua que se fala naquele país, fiquei sabendo que desde o ano de 1992, quando foi promulgada a constituição democrática no Paraguay, o guarani, língua falada por 90% da população, foi elevado elevado à categoria de idioma oficial e além disso foi incluída a obrigatoriedade de seu ensino nas escolas. E que existe uma terceira língua, ou dialeto, como querem alguns, que é falada no dia a dia, uma mescla de espanhol e guarani, que se chama Jopará e quer dizer exatamente o que significa; mistura, mescla. Nas cidades, até por uma questão prática, já que muito do que existe hoje não existia nos tempos pré- colombianos, o Jopará é mais carregado de elementos do espanhol. Em contraposição, na zona rural, predominam os vocábulos em guarani, chegando ao ponto, em algumas regiões, de haver gente que só sabe falar o guarani.

Pelo lado mais prosaico, descobri que uma das comidas típicas do país, a sopa paraguaia, não tem nada a ver com sopa, mas trata-se de um gostoso bolo feito de milho verde, fubá, cebola, manteiga, queijo ralado e sal. Coisas do Paraguay…

E, finalmente, quando, por acaso, dei com um site da famosa Ciudad del Este, me lembrei que Paraguay é sinônimo de compras e me animei com a idéia de presentear-me com uma boa camera fotográfica. O que acabou não dando certo, já que o ônibus apenas passa por esta cidade e a exigüidade do tempo não nos permitiu nada mais além do que nosso objetivo inicial, ou seja, o curso de Terapia Florestal.

Depois de uma criteriosa avaliação, e muitas perguntas a amigos, gerentes de bancos e fóruns virtuais com gente que costuma viajar ao Paraguay, decidi que era melhor levar dinheiro vivo, reais e dólares e ir trocando por guaranis (moeda paraguaya) aos poucos, nas onipresentes casas de cambio.

Assim, no dia marcado para nossa partida, com duas mochilas às costas, uma dúzia de sanduíches com pão integral, especialmente preparados para a longa viagem e um certo friozinho na barriga, liguei para meus amigos, para saber onde nos encontraríamos na rodoviária. Surpresa! O celular deles (o casal só tem um celular) tinha ficado com o filho de Patrícia, que me informou que sua mamãe tinha viajado para o exterior e deixado o mesmo com ele!

__ Mas como assim? Eles não deixaram nenhum recado para mim? Eu sou o Chico Abelha, vou viajar com eles para o Paraguay!

__ Não, eles não me falaram nada.

__ …

O frio na barriga aumentou, transformou-se em um imenso abismo gelado! E agora? Será que eles já foram sem mim? Esqueceram de mim? Não podia acreditar que eles tivessem feito isso comigo. Havíamos deixado para comprar as passagens na última hora, na rodoviária de São Paulo, porque assim eles sempre fizeram e sempre havia lugares. Seria este um aviso para não viajar? Estaria eu fugindo de alguma coisa aqui no Brasil?

Toda sorte de pensamentos negativos passaram por minha cabeça. Eu deveria desistir ou dar uma de louco e ir sozinho, caso eles já tivessem partido? Mas como ir sozinho se eu não tinha ao menos o endereço ou telefone dos nossos anfitriões no Paraguay? E se meus amigos inconsciente e convenientemente, tivessem esquecido de mim? Vai saber…

Resolvi recorrer a quem sempre recorro nas horas de dúvida, o tarot! Costumo tirar apenas uma carta quando se trata de sim ou não. Saiu a Imperatriz, que considerei uma carta positiva. Senti um certo alívio, mas ainda não me dei por satisfeito e tirei mais uma, depois outra e outra ainda! Todas elas foram positivas, ou na pior das hipóteses, neutras. Mas a dúvida ainda persistia em meu coração e por isso tirei aquela que foi a última. Para minha alegria, saiu o Sol, eu podia colocar-me em movimento que tudo iria se esclarecer. E em movimento me pus, confiante agora e com a determinação de ir sozinho, em direção ao desconhecido, como o Louco do tarot, mesmo que eu não encontrasse meus amigos.

Deixei meu carro na casa de minha mãe e segui para a estação rodoviária de minha cidade. Comprei minha passagem para São Paulo e ainda estava guardando o troco no bolso quando avisto Hamilton e as duas crianças, sentados em uma pilha de mochilas cheias até a boca. Seu sorriso varreu qualquer sombra de ansiedade de que as coisas pudessem não dar certo. Nem questionei nosso desencontro, apenas contei sobre o tarot e a dúvida de momentos antes. Comentamos sobre sincronicidades, sobre silenciar a mente e fluir como o momento e eu entendi a importancia das coisas terem acontecido da maneira que aconteceram. Por causa do desencontro, pude fazer um questionamento e tive a certeza de que viajar ao Paraguay era a coisa certa, para mim, naquele momento.

Compradas as passagens, ônibus lotado, às 18 horas estávamos saindo de São Paulo, enfrentando os habituais congestionamentos deste horário. A viagem toda durou 20 horas e só tivemos uma parada de 20 minutos em Ciudad del Este, para limpeza do banheiro do ônibus, cujo estado pode-se bem imaginar…! Ao longo das 12 horas iniciais, não houve uma só parada e foi servida no ônibus uma refeição (meia boca) quente à noite e um café da manhã (um quarto de boca) logo cedo. Graças a Deus houve uma pane no sistema de video, não conseguiram passar nenhum filme e por isso pude conciliar o sono sem o incômodo daquela insuportável luz azulada e do ruído de tiros, gritaria e automóveis em fuga.

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Às 6h e 30min da manhã, chegamos a Ciudad del Este, onde baixaram os sacoleiros e o ônibus esvaziou-se quase que completamente. Esta cidade de fronteira, pelo menos por onde passamos de ônibus, se assemelha a um gigantesco shopping center a céu aberto, com as ruas coalhadas de camelôs. Tive arrepios só de me imaginar em meio àquela babel mercantil. Os cartazes e outdoors luminosos anunciavam todo tipo de coisa, desde eletrônicos sofisticados até roupa usada. O tipo físico predominante das pessoas que circulam pelas ruas é da raça dita amarela.

Da janela do ônibus, nas proximidades do terminal rodoviário, eu pude ver índios morando nas calçadas, em precárias barracas cobertas com plástico, pano e papelão, em meio a muita imundície. Durante a parada para limpeza do banheiro, a língua que se escutava era o guarani, cujo som me pareceu similar ao do chinês e tão incompreensível quanto a língua oriental, embora eu pudesse identificar alguma coisa parecida com o espanhol de vez em quando. Provavelmente, o que eu escutei foi o Jopará.

Os 400 km que separam Ciudad del Este da capital, Assunção, no outro extremo do país, foram percorridos em aproximadamente 6h. Trafega-se bem mais lentamente no Paraguay do que no Brasil, lá o tempo é outro. A sensação era de ter voltado atrás algumas décadas e fui acometido de uma gostosa nostalgia. Meus olhos, cansados da noite mal dormida, recusavam-se a fechar e comiam gulosamente a paisagem cheia de novidades. Minha camera Sony, velha de guerra, registrou bem umas 500 imagens nestas primeiras horas de Paraguay.

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Da janela do ônibus eu podia ver muitas pessoas sentadas nas calçadas sorvendo mate ou tererê de suas cuias, às quais eles chamam de guampas (que quer dizer chifre). Mal comparando, o mate equivale ao nosso cafezinho, com a grande diferença que tomar mate ou tererê envolve um ritual cheio de detalhes e nuances. O mate é tomado quente, enquanto que o tererê toma-se frio, com água bem gelada. Tanto a um como ao outro, pode-se adicionar ervas medicinais, que são chamadas de yuyos ou remédios (pronuncia-se djudjos). Abundam os vendedores de mate e tererê pelas ruas do país e invariavelmente, nos pontos de venda, há uma mesinha com uma grande quantidade de ervas, frescas ou secas. Há também muitas cuias e garrafas térmicas com água quente ou gelada à disposição do freguês e o vendedor conhece as propriedades de todas as ervas que vende, aconselhando o cliente, segundo as queixas e sintomas que este apresenta. Muitas vezes é o vendedor quem vai apanhar no mato ou cultiva os remédios em seu jardim. Claro que toma-se também o mate puro, que é digestivo, estimulante e diurético, pelo simples prazer de toma-lo.

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Dentre as ervas oferecidas para se tomar com o mate, reconheci algumas comuns aqui no Brasil. Há a losna, a erva cidreira, a cavalinha, a hortelã, a camomila, a alfavaca, o alecrim e o boldo, dentre muitas outras. Se o freguês vai tomar o mate ou tererê ali mesmo, o vendedor, munido de um pequeno pilão, transforma a erva fresca em uma pasta que é colocada na garrafa térmica com água gelada, com pedras de gelo mesmo, para o tererê. Ao mate, geralmente só se acrescentam ervas secas.

Tudo isso eu só fiquei sabendo mais tarde, depois de alguns dias de Paraguay, mas no primeiro dia, a caminho de Assunção, não pude deixar de reparar a grande quantidade de vendedores com suas mesinhas à beira da estrada.

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Outra presença constante no Paraguay são as chiperias e os vendedores ambulantes de chipas, uma deliciosa rosquinha típica paraguaya, muito parecida com o nosso pão de queijo. Basicamente são a mesma coisa, só que as chipas levam fubá e erva doce na receita. Um pouco antes de chegarmos a Assunção, o ônibus para em frente a uma grande chiperia, a Maria Ana. Não podemos descer mas sobem moças bem arrumadas e muito bonitas, vendendo cheirosas chipas quentinhas, recém saídas do forno. Impossível resistir a tal delícia. Pudera, já passava da hora do almoço e com certeza o horário da parada ali fora estratégicamente calculado para encontrar nossos estômagos roncando…

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Finalmente, depois de 20 horas de ônibus, chegamos à cidade de Assunção. Após um telefonema e uma espera de 15 minutos, aparece Jacinto, nosso anfitrião, com um carro grande o suficiente para acomodar os cinco brasileiros e suas mochilas. Jacinto é simpático, se espressa num portunhol facilmente compreensível e durante o trajeto me esclarece que Assunção é uma cidade com menos de um milhão de habitantes, mas que cresceu tanto que acabou abocanhando cidades vizinhas, formando um conglomerado urbano de mais de 2 milhões e meio de pessoas. A cidade tem muitos poucos prédios de apartamentos, não contei, mas arrisco dizer, depois de rodar pela cidade, que estão em torno de uma centena.

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O transito é lento em alguns pontos e Jacinto reclama que de uns tempos para cá, as coisas tem piorado muito, segundo ele, devido ao aumento no numero de veículos. Reparei que a sinalização de transito, principalmente a de solo, é praticamente inexistente. Lembrei-me de quando estive na India, país em que o ato de dirigir é muito mais comandado pelo instinto do que pela racionalidade.

Marta nos recebe efusivamente em sua casa, com uma comida quente, que se não era uma refeição paraguaia, como eu esperava, pelo menos saciou minha fome de leão, que vinha sendo (mal) enganada com porcarias durante a viagem. Todos tomamos banho e nos preparamos para a próxima etapa da viagem, ou seja os 85 km até a reserva de Mbatovi, na cidade de Paraguari, localizada a sudeste de Assunção. Por uma questão de logística, Hamilton, Patrícia e as crianças seguiram na frente e eu fiquei para ir mais tarde com Marta e Jacinto.

Pude então caminhar um pouco pelo centro da cidade, onde vi lojas que pareciam ser de 100 anos atrás, convivendo com shopping centers modernos, em nada diferentes dos que tenho visto pelo mundo afora. Naturalmente, a capital é bem mais ocidentalizada que a zona que eu acabara de percorrer de ônibus horas antes. Não havia vendedores de mate e tererê pelo centro da cidade, mas encontrei gente sorvendo mate de suas cuias nas praças que passei.

Caminhei sozinho, à noite, pelas ruas de Assunção e posso dizer que não tive receio nenhum de faze-lo. Ficou evidente que o nível da violencia, que evidentemente deve existir no Paraguay, não tem nada a ver com a das nossas cidades brasileiras. Por exemplo, não vi nenhum condomínio fechado em Assunção. Contudo, à beira da estrada, no percurso entre a capital e Ciudad del Este, pude ver, com muita tristeza, pelo menos duas grandes placas anunciando Barrios Cerrados, à frente de enormes terrenos ainda vazios. No pacote de importação desse país, que importa praticamente tudo que é industrializado, não poderia faltar este estilo de morar intramuros.

Senti fome e como eu estava sem dinheiro, resolvi tirar alguns guaranis de um caixa eletrônico do Banco Itaú. Eu já havia me informado no Brasil que esta operação era possível, fazendo uso do meu cartão de débito. Antes de finalizar a operação no terminal eletrônico, me foi dito que cobrariam uma taxa de 25.000 guaranis, o que daria 5% do valor que eu pretendia retirar. Acontece que quando confirmei o valor do saque, 500.000 guaranis, apareceu uma mensagem dizendo que eu não estava autorizado a sacar aquele valor. Optei por um valor mais baixo e houve nova recusa. O único valor que consegui tirar, foi 125.000 guaranis e a taxa da operação continuava a mesma, ou seja, me cobraram 20% do valor sacado! Um roubo! Ainda bem que eu tinha alguns dólares, que foi o que me salvou de ser assaltado ainda mais…

A viagem até Paraguari, onde se localiza a eco reserva, demorou mais do que eu esperava. Sair de Assunção não é fácil, mesmo para assuncenos. Presenciei Marta e Jacinto discutindo sobre o melhor caminho e quase metade do tempo da viagem foi gasto para sair da cidade. As estradas são boas, poucos buracos, mas ninguém corre como no Brasil. A impressão que tive é que não se tem pressa de chegar a lugar nenhum naquele país. O que não vale para Jacinto, que está mais para brasileiro do que para paraguaio…

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Chegamos à reserva já tarde da noite e nos esperava um lanche com suco de laranja. Os cítricos abundam no Paraguay e notei que eles são plantados como arborização urbana. Pode-se ver pés de mexerica, laranja, limão e pomelo com seus frutos coloridos enfeitando as ruas. Não vi ninguém colhendo-os, mas não posso imaginar que sejam apenas para enfeite e alimentação de pássaros. Encontrei variedades de laranjas muito diferentes das que estou acostumado a consumir no Brasil. O nosso limão cravo existe por lá também, mas com menos manchas de antracnose, sua casca sendo por isso mais lisa e a forma do fruto mais arredondada.

Uma grande quantidade das ervas medicinais silvestres que conheço aqui no sudeste do Brasil, encontrei-as também no Paraguay, com a diferença de que lá elas são mais exuberantes e de aparência mais saudável. Provavelmente o solo e o clima sejam os responsáveis por isso, já que lá há extremos de temperatura e o solo é mais vermelho. Às vezes, tamanha a diferença na aparência, eu tinha dúvidas se se tratava da mesma planta. Esmagar e cheirar foi o meu recurso para confirmar se eram as minhas velhas conhecidas aqui do Brasil. Encontrei o piracá, o picão, a macela (ou marcela), a erva-canudo e a pariparoba. Os nomes não são os mesmos, mas as propriedades sim, isso pude confirmar perguntando aos nativos. Com árvores a mesma coisa; vi muito ipê, paineira, guatambú, pau-pólvora e guapuruvú.

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Só dia seguinte pela manhã é que pude ter a noção de onde me encontrava, uma encosta de montanha orientada para o por do sol, com um visual deslumbrante. São 15 ha de floresta particular, que agora se integram à recém criada área de preservação da municipalidade de Paraguari.  Um pequena infraestrutura abriga a recepção, há alojamento para os guias, duas cozinhas, um kiosk e dois chalés que hospedam visitantes e os donos do empreendimento. Um lindo deck de madeira dá vista para o vale onde está a cidade de Paraguari, 15km abaixo. Há um gramado que separa a área construída da floresta e pode-se encontrar frutíferas espalhadas por todo canto.

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Aos poucos, os “alunos” do curso foram chegando. São jovens com menos de 30 anos, que quando começaram este trabalho de guias de eco turismo em Mbatovi eram ainda menores de idade e hoje estão casados e com filhos. Os homens são maioria. Foram recrutados entre os bomberos, que no Paraguay são jovens voluntários treinados para este fim. Sim, eles não ganham nada para fazer este serviço de utilidade pública. Isso existe aqui ao lado neste nosso país irmão! O estado apenas financia instalações, material e treinamento e todos os envolvidos trabalham sem receber um só centavo…

Alguns dos guias ainda mantém uma atividade paralela, já que os ganhos com turismo são irregulares e dependem de uma demanda incerta. Por isso, alguns deles são pedreiros, agricultores, cozinheiros e outros ainda trabalham como guias em outros empreendimentos de esporte de aventura.

Ve-se que nossa clientela é bastante heterogênea. Em um determinado momento eu tive dúvidas se os alunos iriam captar o que fôramos passar para eles, ou seja, consciencia ambiental e por conseqüência, de si mesmos, utilizando dinâmicas de grupo, ioga e meditação. Mas ao fim do curso, no momento da partilha, os depoimentos superaram minhas expectativas e muito!

Os relatos davam conta que nunca, em 7 anos de trabalho, os guias haviam percorrido as trilhas sem os pesados equipamentos de segurança e que quando tiveram oportunidade de faze-lo e em silencio absoluto, se deram conta de coisas que jamais haviam visto e vivenciado antes. Antes eles percorriam as trilhas a trabalho, agora, se transformaram em observadores, do entorno e de si mesmos.

Mas o mais impressionante foi que dois deles levaram as técnicas de respiração e meditação aprendidas no curso para seus familiares, com as quais praticaram e puderam ver os resultados positivos. Isso no dia seguinte em que as aprenderam! Foi emocionante perceber gente simples desprovida de preconceitos, descendentes diretos de índios, se beneficiando de técnicas orientais de meditação de respiração. Para mim, este foi o maior ganho da viagem. Perceber a inocencia e abertura do povo paraguaio.

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Eu confirmaria esta abertura quando visitei ao mercado em Paraguari, no dia seguinte ao encerramento do curso. Fiz questão de ir de ônibus e sozinho, para poder sentir um pouco mais da vida do paraguaio comum. Informado dos horários, fui para a estrada e me preparei para uma espera de 45 minutos. Para minha surpresa, 10 min se passaram e surgiu um ônibus bem velho, descendo a estrada a 20 km por hora. Fiz sinal e entrei por uma das portas abertas, já que não havia nenhuma indicação visível. Quis pagar a passagem ao condutor que me indicou um garoto que circulava pelo colectivo, cobrando os passageiros. Eu não tinha os 3.000 guaranis trocados, em minha carteira havia apenas notas de cem mil e duas moedas de 1000. O garoto me disse que 2.000 pagavam a passagem, e recolheu as moedas da minha mão. Tomei aquilo como um bom sinal.

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Uma vista d’olhos dentro do ônibus, me informou que ele devia ter pelo menos uns 50 anos. O chão era de madeira gasta, o forro do teto de duratex, o parabrisas tinha uma enorme rachadura, remendada com cinta scotch e a cadeira do motorista não era uma poltrona e sim uma cadeira mesmo, fixada ao chão com parafusos. Entendi a baixa velocidade do colectivo ao observar que o motorista não parava de virar o volante para um lado e para outro. Havia uma folga enorme na direção e todo cuidado era pouco para não deixar despencar o veículo pelos barrancos da serra…

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Chegamos à praça do mercado uma meia hora depois e dei graças a Deus quando baixei do ônibus, por ter chegado vivo e inteiro a Paraguari. Chamou-me a atenção a quantidade de vendedores de remédios com suas mesinhas repletas de ervas e para eles me dirigi. A primeira pessoa com quem conversei, dona Hermínia, já permitiu ser fotografada, filmada e entrevistada. Falava espanhol com facilidade e no papo com ela fiquei sabendo do nome e finalidade de cada uma das ervas em seu balcãozinho armado na calçada. Muitas das ervas é ela mesma quem planta ou coleta na natureza, outras, mais difíceis de serem encontradas, ela compra de quem se aventura a coletar em pedreiras íngremes e topos de árvores. Reclamou da dificuldade de encontrar certas ervas, pois o consumo está aumentando muito. Alguns remédios semi industrializados, embalados em papel e com um desenho colorido ilustrativo, são trazidos por vendedores de Assunção. Curam diabete, problemas na próstata, lombrigas, tosse, etc… De dona Hermínia comprei menta, losna, anis e alfavaca, para me preparar um chá, pois na eco reserva não havia uma horta com temperos e chás. Depois de uma semana longe de casa, eu já sentia muita falta do meu habitual cházinho matinal.

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O mercado de Paraguari vende de tudo. Além de funconar como terminal de ônibus, lá encontram-se à venda roupas, carnes, farinhas, pães, chipas, frutas, leite fresco em garrafas pet, eletrônicos e também muita comida pronta, para se comer na hora. Eram 8h da manhã e havia muita gente comendo bifes, ovos, empanadas, chipas e outras coisas de origem animal que não consegui identificar e não tive oportunidade de perguntar do que se tratava.

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Mas o que mais me espantou foi encontrar, bem no centro do mercado uma guarderia de niños, que vem a ser uma creche onde os pais podem deixar os filhos durante o dia todo, para poder trabalhar. Quem toma conta da guarderia é dona Ana Lia, que exerce a função há mais de 20 anos. Os 8 primeiros anos ela trabalhou como voluntária, mas um belo dia resolveu pedir ajuda à municipalidade que prontamente providenciou um salário. Hoje, ela e as professoras que ali trabalham, recebem uma pequena ajuda de custo.

É ela quem está na imagem abaixo, tomando seu mate com yerba de lucero (Pluchea sagittalis), remédio bom para a digestão, segundo ela. Dona Ana Lia conta que era católica, mas um dia, por acaso, ao assistir um programa na televisão, encontrou Jesus e nunca mais se separou dele, tornando-se evangélica à partir de então. Ela também deixou-se fotografar, com a condição de que eu não mostrasse as imagens para nenhuma criança, para não assusta-las…

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Dentro do mercado eu encontraria muitos produtores que vieram vender sua pequena produção agrícola. Trazem seus limões, mandioca, abóboras, feijões, milho, farinhas, leite e queijo. Todas as pessoas que abordei deixaram-se fotografar e conversaram comigo sem ao menos saber quem eu era e de onde vinha. Muitos me confundiam com um gringo perdido no interior do Paraguay ou com muita boa vontade, um periodista argentino. Só depois da conversa estabelecida é que eles queriam saber quem eu era e o que fazia ali. Isso me mostrou o quanto esse povo ainda mantém, de forma generalizada, uma boa-fé que aqui no Brasil anda tão difícil de se encontrar.

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Lá pelas tantas, depois de muitas fotos e entrevistas, me bateu uma fome de leão, mas uma fome específica, de tomar um suco de lima da pérsia e comer uma empanada de carne que eu já tinha visto num local. A empanada foi fácil de achar, mas o suco de lima ninguém tinha. Acabei comprando meia dúzia desta fruta em uma barraca e pedi a uma mulher que tinha um liquidificador que me batesse as limas descascadas. Ela gentilmente se dispôs a faze-lo, só que o liquidificador travou com as minhas limas dentro. O jeito foi acrescentar suco de laranja que ela já tinha espremido, mas contra minha vontade, porque eu não queria misturar as duas frutas. Tomei o suco, comi a empanada e fui pagar. A mulher se recusou, disse que não era nada e ainda me abriu um grande sorriso. Quer alimento melhor para a alma do que uma gentileza dessas? Se eu já estava gostando o Paraguay, passei agora a amar essa gente simples, disponível e sobretudo carinhosa com o forasteiro.

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No mercado, ainda comprei um pacote de mate de nome Curupi, que é uma mistura de erva mate com boldo e menta, uma ótima e refrescante combinação para um tererê. Levei também poroto manteca (favas), um pacotinho de poroto rojo e um macinho de coentro, muito utilizado na culinária local, tanto que tem até nome em guarani (kuratõ).

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Saí para as ruas e passei a fotografar um pouco da arquitetura de Paraguari. Encontrei muitas casas antigas e sem o cuidado que eu imagino que deveria se dispensar a construções que são evidentes documentos históricos, já que a cidade é cognominada de “berço da independencia nacional”. Surpreendi-me com a quantidade de cursos superiores que existem na cidade, tanto na área de humanas e exatas.

Quando me dei por satisfeito com as fotos e achei que era hora de voltar, olhei ao redor para me localizar e buscar um ônibus para voltar. Adivinhem quem vinha vindo com seu andar de tartaruga… Sim, o mesmo colectivo que eu tinha tomado na vinda, com o mesmo motorista e o mesmo cobrador, agora voltava no sentido contrário. Pensei duas, tres, quatro vezes e levantei o braço fazendo sinal para ele parar. O sol estava muito quente para eu ficar na beira da estrada esperando por outra alternativa…

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Ao chegar à eco reserva, a refeição que me aguardava era uma comida típica paraguaya, o bori bori, de longe a melhor e mais gostosa que comi no país. O que caracteriza o bori bori é que nele não podem faltar bolinhas feitas de fubá grosso e queijo, às quais pode-se adicionar caldos de legumes ou carnes a gosto do fregues. Saborear esta iguaria temperada com muito alho, cebola, cheiro verde e coentro é como receber um abraço por dentro… Na foto acima, pode-se ver Hamilton, Patrícia e as crianças e ao fundo, Marta à mesa e Jacinto ao computador.

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No dia seguinte, o ultimo que passaríamos em Mbatovi, houve uma atividade que eu não esperava e que muito me agradou ter participado. Convocou-se a municipalidade, os estudantes e o Comando de Artilleria, para um mutirão de coleta do lixo da beira da estrada que liga Paraguari a Mbatovi. Aproximadamente 100 pessoas se reuniram, receberam instrução minuciosa e, munidos de jalecos, luvas, água e sacos de plástico, encheram um caminhão de lixo em 3 horas de trabalho. Impressionante a quantidade de objetos que há na beira da estrada. De carro não se vê praticamente nada, mas quando se caminha à pé, saltam aos olhos garrafas de bebidas alcoolicas, latas, sacolas plásticas, pneus, partes de autos e o que mais me impressionou, uma enorme quantidade de fraldas descartáveis usadas. A pedido de Marta, registrei todo o evento e do material bruto preparei um extrato que está no video abaixo.

Durante a coleta do lixo, que abrangeu 1o km de estrada, encontrei muitas dessas “casinhas” que ficam à beira da estrada, em memória de falecidos em acidentes. É notável a quantidade desses pequenos monumentos, que eu já havia reparado desde que entrei no Paraguay. A beira das estradas é sempre muito espaçosa, algo como 30 metros de grama e nela pastam animais atados a uma corda. Além de um bonito paisagismo, essa é uma atitude inteligente, pois economiza dos dois lados; tanto para o poder público que não tem que roçar, como para o dono da animal, que tem o pasto à disposição.

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Vi também uma placa muito curiosa, onde se lia “Acá se cura de diabetis”. Claro que fui me informar. Encontrei o sr Jaime, reunido com sua familia, à beira da estrada, um costume que observei em muitas propriedades, esse de ficar tomando mate ou tererê, no largo espaço entre as moradias e o leito das estradas. O sr Jaime foi frio a princípio, mas acabou revelando que seu remédio é infalível e que vem gente de Argentina, Brasil e Estados Unidos para comprar sua garrafada, que ele chama de remédio. Interessado como sou sobre plantas medicinais, não pude segurar a pergunta de qual ou quais são as plantas que compõem esse milagroso remédio. O sr Jaime não titubeou e disse que não podia revelar o segredo, sob pena de que ele ia perder o poder. Ele havia recebido a receita diretamente de Deus, que a concedeu na condição de que ele jamais a revelasse… Para quem se interessar, é só ligar para o numero da placa; o código internacional do Paraguay é 595.

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Quando falei com o sr Jaime, estava acompanhado de um professor da faculdade de Economia de Paraguari, que escutou o minha conversa. Percebendo meu interesse, ele me contou que no Paraguay existem muitos médicos, que na verdade são benzedores, aos quais o povo recorre na precisão. De uma consulta com esses médicos, a pessoa sai com uma receita dada pelo mesmo, que não passam de tisanas que devem ser preparadas com ervas que o doente mesmo vai colher na natureza. Sabedor disso, passei a perguntar para as pessoas, que me confirmaram que esta prática é bastante comum no país.

O dia seguinte seria o último que passamos no Paraguay. Quando saí de Mbatovi, parecia que estava deixando minha casa, tal a afinidade que estabeleci com aquele lugar, nos 5 dias em que lá passei. No curto espaço de tempo em que fizemos as despedidas, houve tempo para conversar com alguns guias e o assunto foi lendas populares. Isso devido ao nome da erva Kurupi, que é o mesmo Curupira que existe no Brasil também. Me contaram de Jaci Jaterê ou YaciYatere, que seria o nosso Saci Parerê, que aqui, por ter sofrido influência africana, distanciou-se do original indígena. Outro que guarda semelhança, mas aí por influência européia, é o Luison, que nada mais é do que o nosso Lobisomem. O Luison é um misto cachorro, anta e macaco, que ataca as pessoas não só em noites de lua cheia, mas também nas tempestades. Infelizmente não houve tempo para nos aprofundarmos, mas isso e tudo o mais que vivi no Paraguay, me fez ter a certeza de que um dia voltarei, tamanha a riqueza de folclore e cordialidade que este povo carrega consigo.

No dia seguinte, Jacinto nos levaria até o Terminal de Omnibus de Asunción e depois de uma despedida emocionada, fomos fazer algumas compras de última hora, pois com a correria toda não tivemos tempo para tal. Na hora e meia que ainda tinhamos pela frente antes de embarcar, resolvi fazer como os paraguaios e pedi um tererê numa das mesinhas que vendem o produto. Até então, eu ainda não tinha me arriscado a tomar o mate, pois sei que é estimulante e diurético.

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Dona Silvia, à direita na foto acima, me ajudou a escolher entre as dezenas de yuyos à disposição. Meu fígado pediu e acabei escolhendo boldo com menta, que vem a ser o famoso Kurupi, do qual acabei comprando um pacote que trouxe para o Brasil. Enquanto dona Silvia, que vende mate há 23 anos no mesmo local, preparava meu tererê, apareceu um senhor pedindo remédio para sua pressão alta. Dona Silvia perguntou qual era o motivo de tal disturbio e se ele já havia consultado um médico. Diante da negativa do cliente, ela se recusou a servir qualquer remédio, alegando que não é prudente mascarar um sintoma desses, que normalmente é indicativo de  algum distúrbio mais grave. Fiquei fã de dona Silvia, tamanha a consciencia da mulher. Só não fiquei fã foi do tererê, pois me fez ir ao banheiro mais de uma duzia de vezes durante a viagem, ou seja, a cada duas horas eu tinha que me sujeitar ao exíguo e mal cheiroso toilette do ônibus, o que estragou minha noite de sono no ônibus…

Numa viagem longa, a gente sempre acaba entabulando conversa com outros passageiros, é inevitável. Reparei que uma mulher que parecia brasileira, pois falava portugues fluentemente, teve que descer na Policia Federal para dar entrada como estrangeira. Assim como quem não quer nada, perguntei se era estrangeira, o que ela confirmou. Daniela mora há muitos anos no Brasil, onde trabalha de empregada doméstica. Reparei que sua bagagem era muita, uma meia duzia de malas e sacolas e tive a certeza de que ela era uma sacoleira. Como ela fosse paraguaya, perguntei se ela conhecia os médicos. Num portugues claro e limpo ela respondeu:

__Claro que sim! Ontem mesmo minha irmã me levou num médico, porque eu tinha uma baita dor de cabeça!

O médico, contou ela, fez orações, colocou água num copo, jogou umas sementes de milho dentro e mandou que ela tomasse a água. Depois pegou um cigarro e esfregou-o nas costas de Daniela. Hoje ela nem se lembra mais que estava com dor. Toda sua família recorre aos médicos, disse ela.

Conversa vai, conversa vem, acabamos falando do motivo de sua viagem ao Paraguay. Ela tinha vindo visitar os pais, que por coincidencia, moram bem ao lado da reserva de Mbatovi, em Paraguari. E mais, descobrimos que ela tinha vindo do Brasil no mesmo ônibus que nós. Estabeleceu-se entre nos, um clima gostoso de confiança, ela acabou até dando bolachas, balas e brinquedos aos filhos de Hamilton e Patrícia. Nas sacolas, ela acabou nos contando, havia abóboras, mexericas, laranjas, limões, farinha de milho e mel. Tudo presente de seu pai, da produção de seu sítio em Paraguari. Ele, um senhor de 80 anos, fizera questão que a filha levasse os produtos para o Brasil e ela não conseguiu dizer não. Mais uma vez, agora em território brasileiro, o Paraguay me pegava pelo coração.

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Chegando em São Paulo, o corpo reclamando uma cama urgentemente, eu resolvo falar com um rapaz solitário, com traços fortes de índio que viera dormindo durante a viagem toda, sem conversar com ninguém. Descobri que ele era equatoriano e viera procurar trabalho no Brasil, mais precisamente em São Paulo, onde tinha parentes. Se eu estava cansado de ficar 20 horas num ônibus, imaginem o rapaz, que fazia uma semana que tinha saído do Equador, atravessando Perú, Bolívia e Paraguay para chegar a São Paulo em busca de um futuro melhor. Decidi que minha vida é um passeio pelo paraíso…

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